O policiamento contínuo de pessoas negras e a estrutura duradoura da escravidão e do colonialismo europeu é um legado do comércio transatlântico de escravos e do que ocorreu mais tarde durante a Diáspora Africana.
Diante das mortes recentes de Breonna Taylor, George Floyd e Tony McDade nos Estados Unidos, e dos apelos para eliminar todo o tipo de brutalidade policial e violência autorizada pelos Estados no continente africano, na América Latina e na Europa, os laços entre o colonialismo e a escravidão por toda a diáspora se tornaram ainda mais evidentes.
Desde o início dos anos 1500 até o final dos anos 1900, mais de 15 milhões de africanos foram capturados e escravizados por europeus, e trazidos à força para as Américas e ilhas caribenhas.
Um dos piores e mais horrendos exemplos de violação de direitos humanos na história originou a Diáspora Africana, incrivelmente dinâmica, magnífica e culturalmente diversificada. Essa comunidade global é composta, em sua maioria, por descendentes diretos de africanos subsaarianos que vivem sobretudo nas Américas, em decorrência do comércio escravo.
As pessoas negras nas Américas e no Caribe mantiveram os antigos rituais sagrados indígenas de seus ancestrais do continente africano, e também criaram novas práticas e culturas por toda a rota do chamado comércio triangular. Isso inclui desde os tradicionais penteados de tranças ou a utilização de roupas semelhantes a dos seus ancestrais até a criação de novas religiões inspiradas naquelas práticas na África Ocidental. Por exemplo, a santeria e o vodum tornaram-se repetições da religião e cultura iorubá da Nigéria.
O policiamento dessas diversas comunidades de negros tem raizes históricas que continuam a reverberar nos dias atuais, tanto na diáspora quanto no continente africano.
No início dos anos 1700, o estado americano da Carolina do Sul criou a primeira unidade policial de patrulha de escravos, a qual inspirou todos os outros estados com leis escravistas. As patrulhas de escravos eram responsáveis por caçar escravos fugitivos, descobrir e desmontar possíveis revoltas de escravos e punir aqueles considerados culpados por desafiar seus senhores e as leis escravistas.
Leis americanas como a Lei do Escravo Fugitivo, de 1850, que obrigava o governo federal a capturar e enviar escravos para seus senhores — mesmo em estados livres — apenas ajudaram a reforçar a ideia de que a polícia serve para proteger os interesses e as propriedades dos brancos. A brutalidade policial continua nos Estados Unidos, assim como a luta para a sua coibição por meio do movimento Vidas Negras Importam.
Atualmente, cidadãos de muitos países africanos — como Nigéria, Uganda, Zimbábue, Quênia e África do Sul — também sofrem com diversos incidentes de brutalidade policial. Todos esses países criaram seus departamentos policiais durante o período de colonização europeia.
Na Nigéria, jovens ativistas clamaram pelo fim da Unidade Especial Anti-Furto da polícia nigeriana, conhecida como SARS, em um movimento chamado #EndSARS. SARS é considerada responsável por 82 casos de tortura, maus-tratos e assassinatos extrajudiciais desde janeiro de 2017 — quando a unidade foi formada — até maio de 2020. O governo nigeriano reprimiu violentamente o movimento #EndSARS em outubro.
Essa violência estrutural é o legado da colonização britânica na Nigéria. Durante a dominação britânica no território que viria a ser a Nigéria, a Coroa Real dependia dos muitos empreendimentos comerciais para conduzir as relações exteriores e supervisionar suas colônias. O Império Britânico permitiu que essas empresas estabelecessem direitos comerciais e de governo, e também forças militares. As agências policiais da Nigéria foram modeladas a partir desses sistemas e métodos de controle que buscavam proteger e fazer cumprir o domínio colonial britânico.
Padrões similares de violência que ecoam o passado colonial estão presentes na estrutura de policiamento da África do Sul. Durante o apartheid, o Estado utilizou a força da lei para preservar e impor a segregação racial e executar figuras de destaque que eram contra esse regime. Por sua vez, a polícia utilizava força excessiva desproporcional contra os sul-africanos não brancos, e criou divisões duradouras nas comunidades que aterrorizavam. Esse comportamento opressor e antinegro, que foi introduzido pelos colonialistas brancos, continua a impactar as comunidades negras sul-africanas até hoje.
Durante o último verão em Joanesburgo, Nathaniel Julies, um garoto de 16 anos com síndrome de Down, foi morto a tiros pela polícia. O assassinato de Nathaniel, em particular, incitou protestos porque ele era uma criança com deficiência e os detalhes do caso não estavam claros. Os pais do garoto acreditam que a polícia atirou porque ele não falava e não conseguiu respondeu rapidamente as perguntas dos policiais.
No Brasil, onde vive a maior população negra fora do continente africano, a polícia do Rio de Janeiro matou mais de 1.800 pessoas em 2019 — sendo que 8 em cada 10 dessas pessoas eram negras. A Bahia, cuja população é 80% negra, é o terceiro estado do país com maior número de mortes cometidas por policiais no último ano.
O Brasil foi o país do hemisfério sul que recebeu a maioria das pessoas escravizadas e foi o último a abolir a escravidão no continente. Por isso, ativistas afro-brasileiros argumentam que a violência autorizada pelo governo no Brasil está ligada à mercantilização de grupos negros e ao papel do governo brasileiro na transição incompleta da escravidão para o que deveria ser a liberdade.
“Eles matam pessoas negras porque essa é a estrutura da sociedade brasileira”, explica Aline Maia, coordenadora executiva do Observatório de Favelas, uma instituição do Rio de Janeiro que elabora políticas públicas para o Brasil. “[Esse genocídio] é algo que produz dinheiro e gera um espetáculo que faz com que as pessoas brancas se sintam mais seguras, porque é algo que acontece distante delas. É algo que ajuda os políticos a conquistar votos”.
Publicações com #VidasNegrasImportam (tradução de Black Lives Matter) multiplicaram-se no Brasil em fevereiro de 2019, quando um homem negro foi morto pelo segurança de um supermercado no Rio de Janeiro. No dia 20 de novembro de 2020, outro homem negro foi espancado até a morte por dois seguranças brancos, em uma unidade do Carrefour em Porto Alegre, o que gerou uma nova onda de protestos no Brasil.
No Reino Unido, há quatro vezes mais probabilidade de a polícia utilizar força excessiva contra pessoas negras, ainda que elas representem apenas 3,3% da população. Além disso, as pessoas negras na Inglaterra correm duas vezes mais riscos de morrer nas mão da polícia.
No Canadá, entre 2013 e 2017, os canadenses negros estiveram envolvidos em 32% das infrações, 30% dos casos de uso excessivo de força e 70% das situações em que ocorreram disparos por policiais. Apenas em Toronto, os canadenses negros tinham 20 vezes mais chances de serem mortos por policiais.
O supremacismo branco e o colonialismo não são exclusivos dos Estados Unidos ou do continente africano. A brutalidade policial é universal, o supremacismo branco é global e os mecanismos do colonialismo continuam a vigorar, e é por isso que pessoas negras são mortas todos os dias, em todo o mundo.
Por isso, em toda a diáspora, as pessoas negras continuam a lutar, sem descanso, por suas vidas, comunidades e futuras gerações. Nos Estados Unidos dizemos #BlackLivesMatter! Na Nigéria #EndSARS! E no Brasil #VidasNegrasImportam!