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Revivendo o Bokator, antiga arte marcial do Camboja

Categorias: Leste da Ásia, Camboja, Arte e Cultura, Esportes, História, Juventude, Mídia Cidadã
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Aprendiz de Bokator, na província de Kampong Chhnang. Foto e legenda por Hy Chhay / VOD

Este artigo [1], editado por Ouch Sony e Danielle Keeton-Olsen, foi originalmente publicado no VOD News, um site de notícias independente no Camboja, e é republicado na Global Voices como parte de um acordo de divulgação de conteúdo.

Depois de sobreviver ao regime do Khmer Vermelho enterrando, literalmente, as ferramentas de seu ofício no subsolo, Om Yom, um entre os poucos remanescentes mestres da arte marcial cambojana, o Bokator, [2] passa seu tempo ensinando a geração mais jovem. Ele sonha em desenvolver o esporte ao nível das práticas de artes marciais de outros países.

Após quase ser extinto durante a era do Khmer Vermelho, o Bokator está lentamente recuperando sua popularidade no Camboja; em grande parte devido à paixão e perseverança de Yom, de 67 anos, e seus colegas praticantes.

Labokkatao também designado por Bokator, é a arte marcial mais antiga ainda praticada no Camboja e é uma parte importante da história cultural da província de Kampong Chhnang. A antiga arte marcial combina técnicas como cotoveladas, joelhadas e socos, bem como o uso de armas. Foi usada para combates em guerras passadas, além de ser uma fonte de entretenimento e prática espiritual.

A presença do Bokator no Camboja diminuiu à medida em que o país resistia aos períodos de guerra e revolta social. Sob o regime do Khmer Vermelho, quando artistas e atletas foram perseguidos e mortos por serem considerados parte da elite urbana do país, o Bokator quase desapareceu.

Hoje em dia, os alunos demonstram suas habilidades em um clube de Bokator na capital de Kampong Chhnang, cantando e gritando conforme as instruções de Yom. Em uma luta de demonstração, uma adolescente enfrenta dois colegas do sexo masculino, imitando os movimentos que os mestres usavam em lutas mortais no passado. Começando com bastões de combate, a menina desarma seus colegas batendo de lado com seu bastão, esquivando-se e agarrando rapidamente, e quando os meninos finalmente pegam o bastão dela, mudam os ataques para socos e chutes altos.

Originário de Kampong Chhnang, Yom passou os últimos dez anos treinando jovens lutadores na esperança de que o Bokator seja reconhecido [3] como um patrimônio cultural imaterial pela UNESCO, um reconhecimento muito desejado por conta do papel fundamental do esporte nas artes marciais do sudeste asiático.

Ele diz que tem treinado alunos gratuitamente desde 1993; e começou a ensinar colegas em sua comunidade antes de deixar seu trabalho de fundição de moldes para estátuas de pagode (templo) e outras estruturas, para abrir um clube na cidade de Kampong Chhnang em 2004. O clube foi oficialmente registrado em 2011.

Além de treinar alunos, Yom conta que trabalhou com outros defensores do Bokator coletando informações de mestres e divulgando o que pode com Phnom Penh e apoiadores internacionais interessados em preservar a arte marcial.

We have struggled these last 10 years to tell [everyone] that this is ours. We need to write down [the techniques]. We need to gather and not use only what belongs to me, because we have plenty [of information out there].

Temos lutado nos últimos 10 anos para dizer [a todos] que isso é nosso. Precisamos registrar [as técnicas]. Precisamos agregar e não usar só o que é meu, pois temos muita [informação].

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O mestre de Bokator, Ke Som On, de 80 anos, em sua casa no distrito de Rolea Ba'ier, província de Kampong Chhnang. Foto e legenda por Danielle Keeton-Olsen / VOD

Unidos pela história do Bokator

A antiga cidade de Longvek, agora distrito de Kampong Tralach, província de Kampong Chhnang, foi historicamente conhecida como um ponto de encontro de estudiosos, especialistas em artes marciais e outras sábias pessoas, e serviu como o coração dos militares do país desde o final da era Angkoriana até o presente.

Yom, um nativo de Kampong Chhnang, diz que seu avô passou o Bokator para seu pai, concedendo um distintivo dourado amarrado a uma corda como um símbolo de maestria. Como a arte marcial era muito importante para seus antepassados, Yom afirma se sentir chamado a reviver e preservar a tradição.

I have a family line of martial arts trainers in my father and my grandfather, so I think we should do everything (to conserve and develop the sport).

Tenho um histórico familiar de treinadores de artes marciais através do meu pai e meu avô, então acho que devemos fazer de tudo [para conservar e desenvolver o esporte].

A poucos quilômetros da cidade provinciana, outro mestre, Ke Som On, de 80 anos, diz que finalmente se aposentou da prática de Bokator este ano, pois teve alguns problemas pulmonares.

Há apenas cinco anos ele começou a treinar novamente as habilidades arraigadas em sua mente desde os 8 anos de idade.

Assim como seu colega mais jovem, a família de Som On transmitiu para ele a arte marcial. Ele foi ensinado por um tio mais velho que era membro do movimento Khmer Issarak, que lutou pela independência do regime colonial francês.

Som On não queria treinar seus filhos ou outros alunos na arte marcial. Mas nos últimos cinco anos ele se envolveu com o Bokator novamente depois que Yom, um vizinho, o incentivou a partilhar suas habilidades.

Modernizando um “tesouro”

Vath Chamroeun, secretário-geral do Comitê Olímpico do Camboja, afirma que a agência de esportes do país trabalhou com outros mestres experientes durante anos para encontrar outros mestres remanescentes e reunir seus conhecimentos em livros de artes marciais.

Quando Som On começou a treinar pela primeira vez, há décadas, a neta de um mestre assistia às sessões e, às vezes, participava de treinamentos de Bokator.

Agora com 80 anos, Sao Von ainda se recorda de como ela assistia seu avô praticar e tentava imitar os movimentos atrás de sua casa. Quando ela completou 15 anos, seu avô a convidou para praticar com os homens, embora muitos na aldeia a criticassem por isso, ela diz.

Von diz que não consegue mais empunhar um bastão ou golpear como antes. Ela diz que sua memória também está sumindo e seus pensamentos vagam durante a entrevista.

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Sao Von, de 80 anos, em sua casa no distrito de Rolea Ba'ier, província de Kampong Chhnang. Foto e legenda por Danielle Keeton-Olsen / VOD

Chamroeun relata que, à medida que eles estão reunindo conhecimento das tradições mais antigas, o comitê também está modernizando o esporte por meio da criação de uma estrutura de gestão, iniciando competições anuais e estabelecendo regimes de treinamento adequados que seguem as regras oficiais. E desde 2015, técnicas selecionadas, incluindo táticas com armas, foram incorporadas [4] aos programas de treinamento militar do Camboja.

Atualmente, o esporte é reconhecido pela Associação Mundial de Artes Marciais e será incluído nos Jogos do Sudeste Asiático de 2023, mas o status de patrimônio imaterial da UNESCO ainda não foi alcançado pelo esporte.

Novos sucessores

Conforme seus alunos melhoram, Yom diz que está ansioso para desenvolver suas habilidades e levá-los às competições e festivais. Ele conta que sacrifica muito de seu tempo e energia para aumentar o interesse geral no esporte e também a afinidade única da província de Kampong Chhnang para com o Bokator.

Tho Srey Nich, de 17 anos, é uma estudante do clube de Yom que conta ter treinado a arte marcial por quatro anos, embora seus pais, inicialmente, tenham ficado receosos pelo seu interesse no esporte.

Quando ela começou a praticar Bokator, sua família, amigos e vizinhos o consideravam como um esporte masculino e a desencorajaram de treinar.

Whenever they talk [about me], I don’t care, because the important thing is that I love things that are left behind by our ancestors.

Sempre que falam [de mim], não dou ouvidos, porque o importante é que eu amo as coisas que foram deixadas pelos nossos ancestrais.

Yong Tak, de 21 anos, treinou por 10 anos e se tornou um dos melhores lutadores do clube Kampong Chhnang. No início, seus pais também não queriam que ele praticasse o Bokator, apesar de seu pai e sua mãe terem treinado a arte marcial quando jovens.

Na demonstração final dos alunos, Yom observa Tak dar um salto mortal para trás segurando facas nas duas mãos. Não foi um movimento que o antigo mestre lhe ensinou.

“Não consigo me movimentar como ele”, diz Yom, interpretando a criatividade do pupilo como um sinal da evolução do esporte.

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Aprendizes de Bokator na província de Kampong Chhnang. Foto e legenda por Hy Chhay / VOD