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Resumo de 2020: como a tragédia da Covid-19 se tornou uma caso de sucesso para o modelo da China

Categorias: China, Estados Unidos, Hong Kong (China), Itália, Taiwan (RC), Ativismo Digital, Censorship, Direitos Humanos, Governança, Lei, Liberdade de Expressão, Mídia Cidadã, Política, Relações Internacionais, Saúde, Tecnologia, COVID-19, The Bridge

Uma paródia do Stand News [1]  sobre a visita da vice-primeira-ministra da China Sun Chunlan a um bairro residencial em Wuhan, durante a qual os residentes gritaram das janelas de seus apartamentos: “Falso, é tudo falso”, “é tudo encenação”.

O ano de 2020 começou com o surto de Covid-19 em Wuhan e, durante a maior parte do tempo, a nova doença foi um tópico amplamente discutido nas redes sociais chinesas. Enquanto nos primeiros dois meses da pandemia prevaleceram no debate on-line vozes críticas e variadas, a discussão rapidamente deu lugar ao debate sobre a origem do vírus e narrativas positivas sobre o sucesso da China no controle da epidemia.

Em 8 de dezembro de 2019, quando o vírus desconhecido semelhante ao SARS foi identificado em Wuhan, as autoridades chinesas suprimiram a divulgação sobre o assunto, alegando que a doença provocada não era transmissível entre humanos e sinalizando quaisquer alegações contraditórias como notícias falsas. As celebrações do Ano Novo Lunar, que geralmente envolvem grandes reuniões familiares, ocorreram conforme programado até 20 de janeiro [2], quando o Dr.Zhong Nanshan [3], proeminente pneumologista chinês que descobriu o primeiro coronavírus SARS em 2003, falou na Televisão Central da China, confirmando que 14 profissionais médicos em Wuhan haviam sido infectados com o novo vírus.

Três dias depois, em 23 de janeiro, Pequim anunciou  [4]o fechamento da cidade de Wuhan. Mas era tarde demais, pois mais de cinco milhões de residentes de Wuhan já haviam deixado a cidade desde o início de janeiro.

Hong Kong foi uma das primeiras regiões fora da China continental a ser afetada pelo surto. O povo ficou frustrado com a hesitação do governo [5] em impedir que visitantes do continente viajassem para Hong Kong. Ainda assim, a experiência da cidade com o surto de SARS em 2003, junto com a adesão rigorosa das pessoas ao distanciamento social e às medidas de semiquarentena, conseguiram manter a epidemia sob controle [6] ao longo de 2020.

Uma vez que Wuhan estava em completo “lockdown” e a maioria dos meios de comunicação afiliados ao Estado apenas divulgava notícias positivas sobre os esforços dos governos para controlar a propagação da epidemia, repórteres cidadãos como Chen Qiushi [7] e colunistas como as ativistas feministas Guo Jing e Ai Xiaoming [8] tornaram-se as principais fontes de informação sobre a situação básica na cidade.

As redes sociais chinesas foram inundadas com vozes críticas. Uma série de relatórios investigativos [9] da agência de notícias financeiras Caixin revelou que as autoridades suprimiram a cobertura do surto, prenderam denunciantes, proibiram a divulgação do sequenciamento do genoma da Covid-19 por pelo menos duas semanas e censuraram discussões on-line sobre o assunto por mais de um mês.

O encobrimento de informações desencaminhou a Organização Mundial da Saúde [10], que atrasou a recomendação para os países proibirem a entrada de viajantes provenientes da China – algo que poderia ter evitado [11] a propagação global do surto.

A notícia sobre a morte por Covid-19 do Dr. Li Wenliang, um médico da linha de frente que foi preso pela polícia de Wuhan e forçado a assinar uma declaração de arrependimento por “espalhar rumores” sobre a transmissibilidade humana do vírus, aqueceu os ânimos da opinião pública chinesa. [12] Muitos criticaram o sistema político que suprimiu a liberdade de imprensa e expressão [13]. Alguns até descreveram o despertar do público para a catástrofe como “o momento de Chernobyl na China [14]“.

Mas a convulsão durou pouco. Todas as opiniões questionando a autoridade do Partido Comunista da China foram excluídas das redes sociais. [15] Um grande número de grupos e contas de usuários foram removidos. [16] Jornalistas cidadãos, incluindo Chen Qiushi [17], Fan Bing [18] e Zhang Zhan [19] foram presos. Colunistas, como o proeminente romancista chinês Fang Fang [20], foram atacados por patriotas on-line.

Ao mesmo tempo, uma energia positiva [21] foi injetada nas redes sociais, que rapidamente foram tomadas por histórias sobre o fracasso de outros países [22] em controlar a pandemia. A agência de notícias estatal Xinhua chegou ao ponto de pedir que mundo agradecesse a China [23] por suas realizações na luta contra o novo coronavírus. A desinformação alegando que o novo vírus teve origem em outros países e não na China, como Estados Unidos e Itália, também se espalhou nas redes sociais chinesas, principalmente depois que o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores chinês endossou a teoria da conspiração [24].

Desde então, histórias de sucesso sobre a assistência médica da China a outros países [25], o crescimento econômico do país e o desenvolvimento de vacinas contra a Covid-19 dominaram os meios convencionais e as redes sociais em todo o mundo. Mas algumas dessas histórias são falsas, incluindo a distorção das observações [26] de um cientista da OMS sobre o desenvolvimento de vacinas chinesas.

Em Hong Kong, políticos pró-Pequim têm defendido a implementação de um sistema de código de saúde obrigatório [27] semelhante ao sistema da China continental, que restringe o acesso individual aos serviços públicos de acordo com um código de três cores. Até agora, um sistema de código de saúde voluntário [28] foi implementado com a finalidade de registrar a circulação de pessoas em espaços públicos, mas não foi usado para restringir o deslocamento individual.

Recentemente, o presidente chinês Xi Jinping defendeu a adaptação do sistema de código de saúde chinês para restringir e monitorar viagens no mundo todo [29] e muitos estão preocupados que a normalização das medidas de vigilância por conta da epidemia debilite os direitos humanos [30] e, por fim, a cultura liberal e democrática.

É importante notar que a história de maior sucesso sobre o controle da pandemia veio de Taiwan – um Estado de fato separado [31] da China após a guerra civil, quando o Kuomitang (Partido Nacionalista da China) foi derrotado pelo Partido Comunista na Guerra Civil Chinesa (1945-1950). Embora cerca de 1 a 2 milhões de taiwaneses vivam na China por motivos de negócios, trabalho e educação, o país começou a tomar medidas preventivas de controle de fronteira e alertou o público sobre o surto desde o início de janeiro, quando o governo detectou os “rumores” circulando na China sobre o alastramento da doença em dezembro. Após um pequeno surto na primavera, sem rastrear e restringir as condições de saúde e movimentação dos cidadãos, o país não apresentou qualquer caso de transmissão  [32]por mais de 250 dias, até que um caso foi detectado em 22 de dezembro.

Até o momento, o país registrou apenas 749 casos, e a maioria foram importados. Mesmo assim, a OMS continua se recusando a incluir Taiwan [33] em sua campanha global no combate e prevenção da epidemia devido à pressão exercida por Pequim.

O modelo chinês [34] de resposta a emergências em questões de saúde pública conteve com sucesso o surto, mas o rastreamento massivo e a restrição do movimento de pessoas têm consequências em termos de direitos humanos. Por esse motivo, muitos vêem o modelo de Taiwan como uma referência mais valiosa para o controle de epidemias. [35]