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2020: Um ano de lutas feministas e resistência política na América Latina

Categorias: América Latina, Ativismo Digital, Censorship, Direitos Humanos, Eleições, Mídia Cidadã, Mídia e Jornalismo, Mulheres e Gênero, Política, Protesto

 

Protestos em Santiago, do Chile, em 2019. Foto de Carlos Figueroa usada sob permissão Wikimedia Commons [1].

Na América Latina e no Caribe, o feminismo, os movimentos sociais e as mudanças políticas marcaram o ano de 2020, embora a atenção do mundo inteiro estar voltada para a pandemia da COVID-19, que se transforma em uma prioridade global.

No México, Argentina e Caribe, o ano de 2020 foi tingido de roxo e verde por inúmeros protestos feministas [2]. No México, por exemplo, apesar da pandemia, das polêmicas sobre o avião presidencial [3] e a descriminalização da maconha [4], o feminismo, ou melhor, o antifeminismo [5] do governo mexicano assumiu um papel de protagonismo.

Em março, houve uma grande manifestação no México organizada para exigir justiça diante da média diária de 10,5 feminicídios [6], seguida por outros protestos por casos específicos, como os de Ingrid [7], Fátima [8] e Jéssica [9].

Apesar da repressão policial [10], a luta gerou frutos: a Lei Olímpia [11] contra a violência digital, a Lei Ingrid [12] contra o vazamento de material de conteúdo sensível, o registro público de agressores sexuais [5] na capital mexicana e a anistia para o aborto [13].

Na Argentina, denúncias de violência de gênero [15] e aliciamento [16] se multiplicaram. O projeto de lei do aborto voluntário [17] que o governo se comprometeu a apresentar [18] em março de 2020 foi suspenso, sendo finalmente apresentado em novembro, [19]para ser discutido em dezembro. [20]

Diante desses atrasos, como redes sociais tiveram um papel fundamental para fortalecer as redes feministas de apoio. Assim foram organizados protestos [21] contra o aumento alarmante de feminicídios durante a pandemia, tuítaços de Nem Uma a Menos [22] e um panelaço virtual [23] para exigir que o governo argentino votasse em caráter de urgência a lei do aborto voluntário.

Por sua vez, feministas venezuelanas usaram o WhatsApp [24] para continuar apoiando as mulheres e organizar encontros virtuais; e na Nicarágua, organizações feministas [25] denunciaram o desamparo e a ausência de justiça para com as vítimas e seus familiares.

Em janeiro, antes da chegada do coronavírus a Trindade e Tobago, foi promovido um ato público em homenagem [26] às vítimas de feminicídio, no qual os cidadãos exigiram que o estado adotasse medidas eficazes para proteger mulheres e meninas. Em março, após outro caso de feminicídio, os debates virtuais passaram a focar no vínculo [27] entre a violência de gênero e o abuso sexual infantil, principalmente no momento em que as medidas restritivas impostas pela COVID-19 passaram a ser acompanhadas [28] pelo aumento da violência doméstica.

Em dezembro, quando as manchetes informavam sobre os feminicídios de uma jovem mãe [29] e de uma adolescente, [30] as redes sociais passaram a expressar a indignação pela narrativa de que as mulheres “deveriam se cuidar”, e que era necessário tirar o foco das mulheres e redirecioná-lo [26] aos responsáveis pela violência, ou seja, os homens.

Composição de imagens do “Dia Laranja” contra a violência machista em Porto Príncipe, 25 de janeiro de 2020. Fotos de Womantra, sob permissão.

Movimentos políticos no Uruguai, Bolívia, Peru e Chile

Pode-se dizer que a maior mudança ocorrida no Uruguai foi no campo político, com a saída da Frente Ampla (esquerda) e a volta do Partido Nacional (direita) ao governo depois de 30 anos, desta vez em uma “coalizão multicor [31]“. A oposição e outras associações criticam o governo pela Lei de Urgente Consideração  [32]que, a seu ver, é um retrocesso à liberdade de expressão. No entanto, a excelente gestão da primeira onda da COVID-19 deixou apenas algumas dezenas de mortos e posicionou o país como referência em gestão da crise [33].

Na Bolívia, depois de um ano de polarização [34], racismo exacerbado, ataques [35], feridos e assassinatos [36], a população foi pacificamente às urnas [37] em outubro, e 55% dos eleitores garantiram a vitória da dupla Luis Arce e David Choquehuana [38], do partido Movimento ao Socialismo (MAS) [39]. A polarização, em menor grau, volta-se agora para as eleições subnacionais de 7 de março de 2021.

A vitória de Luis Arce nas urnas foi comemorada em diferentes capitais do mundo [40]. Está em suas mãos a conciliação de um país profundamente dividido e confrontado com sua história.

Manifestações na Bolívia. Foto de Eduardo Montaño, utilizada sob permissão.

No exterior [41], a importância dos protestos da geração do bicentenário [42] no Peru — um país atribulado pela destituição do presidente Martín Vizcarra [43], pela renúncia do governo ilegítimo de Manuel Merino [44] e pela nomeação de Francisco Sagasti [45] como presidente interino  [46]— talvez tenha sido subestimada. Porém, tanto Merino [47] como Sagasti [48] utilizaram a repressão policial [49] excessiva e, este último, mantém a institucionalização do país em uma tensa calma. Somadas a este contexto caótico acrescenta-se a crise sanitária da COVID-19 e as políticas extrativistas [50] em territórios indígenas que favorecem as grandes empresas [51].

Por outro lado, a pandemia não impediu o Chile de realizar um referendo histórico, na qual foi aprovada, com esmagadora maioria, [52] a mudança na Constituição promulgada pelo ex-ditador Augusto Pinochet [53] em 1980, e considerada a “mãe das desigualdades no Chile [54]“. O plebiscito, realizado em 25 de outubro, foi a principal reinvindicação que impulsionou a crise social [55] de outubro de 2019, à qual o governo respondeu com repressão [56], prisões e inúmeras violações aos direitos humanos.

Violência, autoritarismo, desinformação e protestos de norte a sul

Na Colômbia, além da preocupação com a pandemia e as mais de 40 mil mortes causadas pela COVID-19, destacou-se a baixa aceitação do governo e o descontentamento dos colombianos diante da ausência de soluções efetivas contra a violência [57]. No entanto, o presidente Duque insiste em negar a gravidade dos registros de assassinatos, que inclui oitenta massacres [58].

O aumento do número de assassinatos [59] de líderes sociais e defensores dos direitos humanos foi alarmante, e revelou que a polícia esteve envolvida [60] no assassinato do advogado Javier Ordóñez, fato que gerou protestos [61] seguidos de repressão e a consequente morte de pelo menos dez pessoas, além de inúmeros feridos.

As ameaças de morte [62], assassinatos, repressão, abusos e censura contra jornalistas e ativistas foram constantes, mas também motivaram o surgimento de mídias [63] alternativas.

Na Venezuela, após um ano de relativa normalização econômica, apesar da hiperinflação e do aumento da emergência humanitária [64], a pandemia revelou um recrudescimento [65] de medidas autoritárias por parte do governo. A maior militarização, o controle de organizações estatais [66] e a perseguição política [67] a jornalistas, ativistas humanitários e dissidentes caracterizaram as políticas públicas desde a chegada da pandemia, com o acréscimo de que o governo de Nicolás Maduro eliminou totalmente a representação política divergente através de eleições parlamentares bastante questionáveis [68].

A crise migratória venezuelana, a mais grave da região com 5,4 milhões de venezuelanos fora do país [69], foi agravada [70] com a pandemia e afetou a vida desta vulnerável comunidade nos países anfitriões [71].

Na Jamaica, o caos e o medo dominaram os cidadãos. Embora a pandemia da COVID-19 liderasse a lista de preocupações, ela foi seguida de perto pelo temor diante de um possível aumento da criminalidade, segundo pesquisa informal realizada no Twitter, ainda que a Polícia da Jamaica tenha informado uma pequena redução [72] de crimes violentos em comparação a 2019.

Por outro lado, os toques de recolher noturnos durante a pandemia não parecem ter impedido centenas de festas clandestinas e atividades sociais [73], algumas delas (organizadas por pessoas com relações criminosas) terminaram em atos de violência.

Na Nicarágua, a cidadania tem sofrido uma combinação de emoções negativas. À crise de saúde pública em decorrência da COVID-19 e à gestão do estado somaram-se o impacto [74] dos furacões IOTA [75] e ETA [76], e as perspectivas diante das eleições de 2021 em um país onde impera a repressão policial [77], a ausência de liberdade de imprensa [78] e de expressão, e as constantes violações aos direitos humanos [79].

Depois da onda de protestos de 2018, cerca de cem mil pessoas [80] fugiram do país, mas muitos nicaraguenses exilados organizaram-se para continuar, do exterior, atuando no ativismo político [81]. Enquanto isso, o governo de Daniel Ortega incentiva uma tríade de leis [82] para reforçar seu aparato de controle sobre a população e evitar qualquer tentativa de oposição orgânica.

Desta forma, a Nicarágua termina o ano com uma escalada sistêmica de violência, uma falsa tranquilidade e dúvidas acerca dos dados sobre a COVID-19 [83], um estado blindado contra os protestos e, sobretudo, incertezas sobre o que acontecerá em 2021.

Mais ao norte, em El Salvador, 2020 foi um ano de muitos conflitos políticos. O presidente Bukele ataca constantemente outros órgãos do estado — a Assembleia Legislativa e a Sala Constitucional da Suprema Corte — referindo-se [84] aos deputados e magistrados como “corruptos, criminosos e ladrões”. Para muitos, seu estilo agressivo revela um plano político para controlar o país. No entanto, mantém um índice de aprovação superior a 75% [85] apesar das acusações de corrupção [86] feitas contra ele, negociação com gangues [87] e ataques à imprensa [88].

Quando Bukele escreveu no Twitter sobre o impacto da pandemia no Equador [89], foi desmentido [90] pelo governo equatoriano. Rapidamente, o conteúdo que circulava nas redes sociais [91] ganhou manchetes no mundo inteiro: corpos sem recolher [92], famílias que procuravam o corpo de um ente querido e supostas cremações de cadáveres nas ruas.

A narrativa da desinformação não foi suficiente para que o governo do Equador explicasse o que aconteceu em Guayaquil. Frente a uma realidade que chegou ao extremo, foi criada uma Força Tarefa [93] para sepultar os mortos. A própria prefeitura de Guayaquil precisou doar caixões de papelão [94] às famílias. Diante desta situação, os povos indígenas da região organizaram-se [95] para proteger-se do coronavírus.

Em resumo, a pandemia surpreendeu uma região já muito castigada, mas também pôs à prova a resiliência dos movimentos sociais, que não se curvaram ante as adversidades e continuaram lutando por seus direitos.

Assim, algumas boas notícias sobre gênero tiveram destaque na região: Equador teve sua primeira marcha trans [97]; o governo argentino aprovou a cota trabalhista para trans e travestis [98] no setor público; a Bolívia reconheceu a livre união entre pessoas do mesmo sexo [99], como ocorreu no estado de Puebla, no México. 

Convidamos você para assistir a esta edição especial [100] de “Vozes da América Latina”, da plataforma digital La Lupa [101], onde alguns de nossos autores da Bolívia, Uruguai e México analisam os principais acontecimentos em suas regiões: