Novo livro honra resistência feminina durante os 21 anos da ditadura brasileira

Capa do livro “Heroínas desta história — Mulheres em busca de justiça por familiares mortos pela ditadura”, que reúne perfis de 15 mulheres que lutaram pela memória, justiça e verdade no Brasil | Imagem: Usada sob permissão.

Marli testemunhou um policial militar matar seu irmão. O marido de Clarice foi torturado e sua morte foi forjada como suicídio. Damaris foi presa, torturada e obrigada a ver seu parceiro ser assassinado na frente de sua família. Crimeia era uma militante política que se uniu às forças de guerrilha armada. Estas são algumas das 15 mulheres retratadas no livro recentemente publicado, “Heroínas dessa História”, que fala sobre suas experiências entre 1964 e 1985, durante a ditadura militar brasileira.

A ditadura, que começou com um golpe de estado em 1964, levou a cinco presidentes militares no curso de 21 anos, e ao menos 434 mortos e desaparecidos. A publicação é a primeira de um projeto maior, coordenado pelo Instituto Vladimir Herzog, nomeado em homenagem a um jornalista cuja morte pelas mãos de agentes do exército brasileiro, em 1975, foi forjada como suicídio. Sua esposa, Clarice Herzog, lutou por décadas contra a versão oficial da morte de seu marido e é uma das “heroínas” nesta recente publicação.

A Global Voices entrevistou por e-mail Tatiana Merlino, uma das coordenadoras do projeto, sobre o papel da mulher na resistência e sobre a importância de suas histórias serem contadas durante a presidência de Bolsonaro.

Global Voices (GV):  Que papel a mulher tinha na oposição à ditadura brasileira de 1964?

Tatiana Merlino: Elas participaram dos espaços de resistência na cidade e no campo, nas universidades e movimento estudantil, nos clubes de mulheres nas periferias, entraram em organizações de esquerda, na luta armada, enfrentando até os próprios companheiros de organização que não acreditavam em sua capacidade de resistir. Participaram da guerrilha do Araguaia; participaram de greves operárias, como a de 1968, em Contagem (Minas Gerais, a primeira grande greve sob o regime militar) e Osasco (SP). A de Contagem foi a primeira e dirigida por uma mulher, Conceição Imaculada de Oliveira, do Sindicato dos Metalúrgicos. Nos anos de 1970, ainda sob a vigência do AI-5, as mulheres da periferia tiveram seu protagonismo ao saírem às ruas, nos movimentos contra a alta do custo de vida. As mulheres que lutaram contra a ditadura foram presas e torturadas. Foram alvo sistemático de violações sexuais. Sofreram estupros e abortamentos forçado devido a chutes na barriga ou foram colocadas em “cadeiras do dragão”, levando choques elétricos na vagina, na barriga, nos seios, na cabeça. Houve aquelas que tiveram seus bebês nos DOI-CODIs.

Carolina Rewaptu, mulher indígena e líder do povo Xavante Marãiwatsédé, expulso de suas terras durante a ditadura. Ela é uma das mulheres retratadas no livro | Imagem: Mariana Leal/Instituto Vladimir Herzog/Usada sob permissão.

GV: Como vocês escolheram as mulheres retratadas no livro?

TM: Partimos de uma pesquisa longa nos principais documentos e livros que tratam dos atingidos pela ditadura: o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, o livro Direito à Memória e À Verdade (editado pela Secretaria dos Direitos Humanos) e o Dossiê Ditadura Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil, da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos. Lemos as histórias dos 436 mortos e desaparecidos (o Dossiê lista 436 e a CNV 434) e fizemos uma grande lista com todos os casos onde havia mulheres citadas. (Destaco aqui o protagonismo dos familiares de mortos e desaparecidos na luta pelo direito à memória, verdade e justiça e sobretudo das mulheres). Fizemos uma lista com mais de 70 nomes. Também ressalto aqui que certamente havia uma mulher na busca por memória e verdade nos demais casos, mas nossa pesquisa só conseguiu fazer o levantamento das que já estavam citadas nos dossiês.

A partir dos 70 nomes utilizamos alguns critérios para chegar aos 15 escolhidos. Também achamos importante ter uma diversidade de perfis de mulheres: mulheres que também combateram a ditadura, as que nunca tiveram militância e viraram ativistas após a morte de familiares, estudantes, intelectuais, operárias, camponesas, indígena e uma mulher que teve familiar assassinado pela violência policial.

Outro critério foi a diversidade regional, já que nos preocupamos em não ter só perfiladas do eixo Rio-São Paulo. Temos também histórias de demais Estados do país, que mostram a abrangência da violência cometida durante a ditadura civil-militar.

GV: O livro reúne histórias sobre mães, esposas e irmãs de pessoas que foram submetidas a tortura e desaparecimento forçado, e as chama de “Heroínas dessa História”. Qual papel os livros de História do Brasil atribuíram a essas mulheres no decorrer dos anos?

TM: O Brasil fez uma transição para a democracia e demorou muito a fazer a chamada Justiça de Transição. O trabalho da Comissão Nacional da Verdade foi super importante, mas demoramos muito, décadas, para que ela fosse criada. Por isso, o ônus de buscar provas sobre as circunstâncias em que os mortos e desaparecidos foram assassinados, quem foram os autores, testemunhas, documentos, ficou sob a responsabilidade dos familiares, em especial as mulheres, que tiveram grande protagonismo e que não havia sido bem documentado até então. Veja, se ainda lutam para conseguir o esclarecimento de todas as circunstâncias em que os atingidos foram mortos e se ainda não conseguiram justiça pelos crimes, fica ainda mais complicado haver espaço para falar desse protagonismo de luta. Por isso que a abordagem desse livro é inédita. Até hoje essas mulheres, com algumas exceções, eram desconhecidas, tratadas como “a mulher de..”, “a irmã do…”, etc. Era mais do que hora de dar-lhes o devido lugar na história, o de heroínas. É o que pretendemos com esse livro.

GV: No livro, você diz que é imperativo lançar luz sobre a vida dessas mulheres enquanto o país está sob o governo do presidente Jair Bolsonaro. Por quê?

TM: Porque temos um presidente que nega a ditadura, exalta tortura e torturadores, ataca mortos e desaparecidos. Além do elogio à tortura e torturadores, há um movimento forte de negacionismo, revisionismo. Além disso, esse governo destruiu as políticas de memória e verdade, quando demitiu a procuradora regional da República, Eugênia Augusta Gonzaga da presidência da Comissão de Mortos e outros membros e no lugar colocou defensores da ditadura. A Comissão de Anistia também foi ocupada por revisionistas e negacionistas. O que esse governo não consegue destruir, ele esvazia.

O tema da memória e verdade da ditadura é alvo do Bolsonaro. E isso não é novidade, afinal as homenagens dele a Ustra antecedem sua chegada à Presidência. Quando do processo de impeachment de Dilma, seu voto de homenagem à Ustra deveria ter sido motivo de prisão, responsabilização. E ele não poderia ter se candidatado à presidência, já que quem defende crimes de lesa-humanidade não pode se candidatar à presidência.

Mas se candidatou, ganhou e segue nessa investida contra o tema da ditadura e todas nossas conquistas ao longo de décadas de luta. Por isso é fundamental, imperativo contar essas e outras histórias sobre a ditadura: lembrar que ela existiu, matou, torturou, sequestrou e que centenas de famílias e mulheres dedicaram décadas para conseguir verdade e justiça por esses mortos e desaparecidos.

GV: Em outros países da América do Sul que também passaram por ditaduras, como a Argentina e o Uruguai, as mulheres tiveram um papel de destaque na luta pela memória, verdade e justiça. Como o processo do Brasil se compara?

TM: Aqui a liderança e o protagonismo também foi de mulheres, elas se juntaram, se apoiaram, criaram o Comitê Brasileiro de Anistia, a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos, entraram com ações na Corte Interamericana de Direitos Humanos, pesquisaram os arquivos do IML, pressionaram para a criação da Lei 9140. Elas fizeram e fazem muito, mas a luta delas é menos conhecida que a das Mães da Praça de Maio, por exemplo, por conta das diferenças como os países lidaram com a questão após o fim da ditadura. A Argentina revogou a lei de ponto final e de obediência devida, puniu os torturadores. Aqui, até hoje, não conseguimos responsabilizar penalmente nenhum agente envolvido nas mortes e desaparecimentos. Seguimos com a pendência em relação à Lei de Anistia, e embora o MPF tenha movido dezenas de ações contra agentes, a Justiça brasileira não aceita as ações com base na lei de anistia. E segue a impunidade, que reflete no Brasil que vivemos hoje.

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