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Na Síria controlada por Assad, a narrativa oficial sustenta que “não há casos de COVID-19″

Categorias: Oriente Médio e Norte da África, Irã, Síria, Turquia, Desastre, Desenvolvimento, Direitos Humanos, Esforços Humanitários, Governança, Guerra & Conflito, Mídia Cidadã, Migração e Imigração, Política, Refugiados, Saúde, COVID-19

Nordeste de Dara'a, 2015. Foto: Mousa Mohamed, usada com autorização.

Nove anos depois de uma devastadora guerra civil [1], hoje o sistema de saúde sírio mal funciona. Nos territórios controlados pelo presidente Bashar al-Assad [2], as autoridades negam a presença da COVID-19.

De acordo com a Universidade Johns Hopkins [3], o país confirmou 439 casos e 21 mortes até 15 de julho, mas relatos locais mostram que o estado negou e reprimiu a realidade da doença.

Walid Abdullah, de 23 anos, conta que o governo chegou a sugerir matar os suspeitos de COVID-19. A pedido, a Global Voices usou um pseudônimo para proteger a identidade da fonte. Pelo telefone, Abdullah revelou que, em 13 de maio, ligou para o Daraa National Hospital, no sul da Síria, para informar sobre um caso suspeito de coronavírus. Quando perguntou o que deveria ser feito, o funcionário do hospital disse: “Mate a pessoa. Não podemos curá-la”.

Rapidamente, Abdullah desligou. É claro que a ideia de assassinar alguém com suspeita de COVID-19 estava fora de questão. “Morrer dessa doença é melhor do que pisar em qualquer hospital público”, desabafou.

O testemunho angustiante foi comprovado também por outras fontes. Em relatório de 10 de março publicado no jornal independente local, The Voice of the Capital [4], profissionais de saúde do Ministério da Saúde da Síria alegaram que “operações que deliberadamente eliminam vidas estão sendo realizadas no hospital público al-Mujtahid, na capital Damasco. Doses extras de medicamentos (anestésicos) são aplicadas nos contaminados”.

A informação foi publicada também nas redes sociais:

Há informações de que, na Síria, pacientes com coronavírus internados no hospital al-Mujtahid estejam sendo mortos horas após o diagnóstico da doença…

Outra fonte no al-Mouwasat Hospital, em Damasco, também foi citada no mesmo artigo confirmando a alegação: “Essas mortes acontecem em total sigilo, e os autores são os médicos que acompanham casos suspeitos”.

A abordagem desesperada do regime de Assad frente à COVID-19 é semelhante a outras estratégias insensíveis adotadas pelo presidente na guerra homônima, que deixou 586.100 mortos [6], quase 100.000 presos [7] e sob desaparecimento forçado e 5,6 milhões de refugiados  [8]pelo mundo.

Uma postagem no Facebook, já excluída, de Firas al-Ahmad, dizia: “O que vocês acham [disso]? Precisamos chamar francoatiradores para fazer as pessoas ficarem em casa? Acordem, acordem!”

A mídia pró-Assad refletiu a mesma mentalidade na cobertura do coronavírus. No começo do surto, Firas al-Ahmad, repórter do canal de TV público Syrian News channel (al-Ikhbariyah Syria) [9] publicou ameaças aos que desobedecessem a quarentena em seu Facebook pessoal:

 

وهلأ شو رأيكن بالحكي ضروري ننصب قناصات لتنضب الناس ببيوتا، لك افهمو يا ناس افهمو” في تهديد مباشر منه للناس للالتزام بمنازلهم بالقوة.”

“O que acham [disso]? Precisamos chamar francoatiradores para fazer as pessoas ficarem em casa? Acordem, acordem!”

 

A postagem foi excluída, mas a captura de tela ficou como prova.

O surto do vírus e a sobrevivência do regime

O regime de Assad só sobreviveu devido a alguns aliados importantes, dentre eles o Irã. [10] Com poucos aliados na região, Teerã também contou com o apoio da Síria.

Em fevereiro, o Irã tornou-se um dos países mais afetados pela COVID-19 no mundo [11] e agora é, provavelmente, fonte de contágio no Líbano, Iraque e Síria, regiões com as quais tropas iranianas fizeram contato físico pela cooperação militar. Além disso, segundo relato de Zaki Mehchy, coautor de um estudo [12] realizado em março e publicado pela London School of Economics and Political Science (LSE), peregrinos e turistas religiosos continuaram a visitar santuários em Damasco até a primeira semana de março.

Porém, o regime de Assad adotou uma política de desinformação, prevaricação e negação quando tratou do número de mortes por COVID-19.

Na entrevista de 13 de março concedida ao canal de notícias oficial da Síria, o ministro da Saúde Nizar Al-Yaziji insistiu em negar [13] a existência de qualquer caso de COVID-19 no país: “Graças a Deus, o Exército Árabe Sírio desinfetou muitos dos germes presentes em nosso solo”.

O Ministério da Saúde sírio só anunciou o primeiro caso de COVID-19 em 22 de março, causando ressentimento e raiva entre sírios que haviam percebido as mentiras e a política negacionista do governo Assad. Em artigo publicado no site de notícias independente sírio SY24 [14] em resposta às afirmações de Yaziji, um cidadão perguntou de forma incisiva: “O senhor não havia dito que todos os germes estavam eliminados?”

Porém, o regime continuou a divulgar [15] números improváveis.

Na declaração [16] de 1º de abril, a Coalizão Nacional Síria da Oposição e das Forças Revolucionárias convocou a comunidade internacional a pressionar o regime e revelar dados reais sobre casos de COVID-19.

Enfatizando que um grande número de mortes estaria por vir, a coalizão escreveu o seguinte:

” إن المعلومات الميدانية التي تصلنا، تؤكد تفشي الفيروس بأعداد هائلة، بحيث بات من الصعب السيطرة على هذا الوباء”

Fontes locais confirmam que o vírus está se espalhando e os índices estão cada vez mais altos, dificultando o controle da epidemia.

Um sistema de saúde em pedaços

O regime de Assad não quer reconhecer a pandemia porque, para as autoridades, seria constrangedor admitir que o sistema de saúde do país é inexistente.

De acordo com um estudo [12] feito pela LSE, estima-se que o sistema de saúde sírio suporte, no máximo, 6.500 casos de coronavírus; a população do país é de 17,5 milhões de habitantes [17]. Se as mortes ultrapassarem essa capacidade, o sistema de saúde, já desgastado pela guerra, provavelmente entrará em colapso.

Durante a guerra, ataques militares causaram vastos danos ao setor da saúde. Dados da Organização Mundial da Saúde e do Ministério da Saúde da Síria mostram [12] que somente 58 dos 111 hospitais públicos do país estão em total funcionamento.

Os dados também mostraram que até 70% [18] dos trabalhadores da saúde migraram ou se refugiaram, enquanto o restante, não raro, sujeita-se a restrições, inclusive interferência política e militar.

Relatório de direitos humanos: o regime de Assad assassinou 669 profissionais de saúde; 83 morreram torturados.

A COVID-19 lado a lado com um desastre humanitário constante

Talvez o maior desafio enfrentado pelos sírios seja os desastres recorrentes: guerra, pandemia e fome. Em 26 de junho, a Organização das Nações Unidas alertou [25] que a Síria está enfrentando uma crise de fome “sem precedentes”, e ao mesmo tempo implora por medidas urgentes para impedir a disseminação da COVID-19.

De acordo com o [26] Programa Mundial de Alimentos, o preço dos alimentos aumentou 11% em maio em comparação com abril, e 133% em comparação com o mesmo período em 2019. O Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários confirmou a situação [27] em relatório de 12 de junho:

Falta de equipamentos de proteção individual. Uma crise de fome sem precedentes. A nova geração não conhece nada além de destruição e privação. Falta de financiamento crítica. Leia o que as agências das Nações Unidas disseram sobre a situação humanitária na Síria

Enquanto a situação econômica se deteriora, Ali al-Ahmed (também um pseudônimo para proteção da identidade), de 28 anos e morador da cidade de Daraa, contou à Global Voices pelo telefone que “a situação é grave, e mesmo quem trabalha muito e ganha 10.000 libras sírias por dia (entre US$ 1 e US$ 5), não tem o suficiente”. Ahmed disse que a maioria das pessoas foi forçada a renunciar a bens essenciais devido aos custos exorbitantes.

Entre um sistema de saúde destruído por anos de guerra e uma situação econômica que empobreceu muitos sírios, a atual pandemia forçou o país a adentrar um território desconhecido e catastrófico.