Em Uganda, jornalistas mulheres carregam “duplo fardo” em razão de ataques virtuais e assédio

A jornalista ugandense Gertrude Uwitware Tumusiime tem vivido o “duplo fardo” de ser uma jornalista mulher em Uganda. Captura de tela de “O Outro Lado: Gertrude Uwitware Tumusiime” do YouTube

Em Uganda, jornalistas mulheres que adotam ferramentas digitais para fazer denúncias, compartilhar opiniões e acessar informações, ficam sujeitas a ataques e assédio ao investigarem e publicarem conteúdo político sensível.

O assédio on-line tornou-se uma nova forma de censura. As jornalistas carregam o duplo fardo da violência de gênero on-line somada a potenciais ameaças relacionadas a denúncias políticas. Essas recorrentes ameaças têm levado as jornalistas a se retirarem do discurso político — fazendo com que a profissão de jornalista seja dominada por homens.

Joy Doreen Biira, jornalista. Foto de Wazabanga via Wikimedia Commons CC BY 3.0.

Em novembro de 2016, a jornalista ugandense Joy Doreen Biira, que estava trabalhando no Quênia em uma rede privada de televisão, o Kenya Television Network (KTN), voltou para sua casa em Uganda para participar de uma cerimônia tradicional.

Enquanto Biira estava em casa, forças armadas ugandenses confrontaram membros do tradicional reino de Rwenzururu na região de Ruwenzori, em Uganda ocidental, e o palácio deles foi completamente destruído pelo fogo. O confronto resultou em 62 mortes, entre elas a de 16 policiais.

Biira reagiu ao ataque militar, publicando sua opinião no Facebook em 27 de novembro:

It’s so sad what I’ve witnessed today with my own eyes — part of the palace of the kingdom I’m from, the Rwenzururu Kingdom, burning down. It felt like watching your heritage deplete before my eyes.

É tão triste o que eu testemunhei hoje com meus próprios olhos — parte do palácio do reino de onde venho, o Reino de Rwenzururu, em chamas. Foi como ver nosso patrimônio desaparecer diante dos meus olhos.

Naquele mesmo dia, Biira foi sequestrada e acusada de “compartilhar fotos explícitas do resultado de um confronto mortal entre as forças armadas e a guarda real do rei regional do reino de Rwenzururu em um grande grupo de WhatsApp”, de acordo com o Comitê de Proteção aos Jornalistas (CPJ). Ela também “postou no Instagram um vídeo do palácio real em chamas e escreveu sobre isso no Facebook”, relatou o CPJ.

Agentes de segurança de Uganda aparentemente forçaram Biira a “apagar suas postagens nas redes sociais” e suas “ferramentas digitais também foram confiscadas”,  de acordo com um Relatório da Freedom House de 2018.

Biira foi acusada de ser cúmplice de ato terrorista por filmar ilegalmente um ataque militar ao palácio de um rei regional — um ato sujeito a pena de morte sob a Lei Antiterrorismo, quando há condenação. Entretanto, um dia depois, ela foi libertada sob fiança.

O que ocorreu com Biira provocou comoção nas redes sociais por meio de hashtags como #FreeJoyDoreen e #JournalismIsNotaCrime. (em português: #LibertemJoyDoreen e #JornalismoNãoÉCrime).

Este internauta criticou a tendência do presidente ugandês Yoweri Museven de silenciar jornalistas:

#LibertemJoyDoreen O presidente @KagutaMuseveni deve parar de silenciar jornalistas. Isso significa uma absoluta impunidade em nosso continente. pic.twitter.com/SGUX985cM0

O advogado de Biira, Nicholas Opiyo, postou um tuíte com as acusações oficiais feitas a sua cliente:

Cópia da caução de Joy – acusada de ser cúmplice de ato terrorista (ridículo!) #jornalismo não é terrorismo @KTNKenya @KTNKenya #LibertemJoyDoreen pic.twitter.com/g5v7cgGryn

Opiyo disse à Global Voices que o caso de Biira foi encerrado e arquivado em março de 2017, após ser investigado por autoridades, que não encontraram evidências para processá-la no tribunal.

“Como em muitos casos como esse, você sente alívio quando é libertado, mas há um sentimento de abuso, injustiça e dor”, disse Opiyo, que também é CEO do Chapter Four Uganda, uma organização de direitos humanos. Opiyo acrescentou que a experiência de passar alguns dias na cadeia e suportar a dor do confinamento é algo que nunca deixa você.

Ataques on-line direcionados

Jornalistas mulheres que sofrem abusos on-line raramente veem justiça ser feita e, com frequência, esforçam-se para que suas denúncias sejam levadas a sério e investigadas apropriadamente.

Em abril de 2017, Gertrude Tumusiime Uwitware, uma apresentadora do noticiário da NTV Uganda, apoiou Stella Nyanzi, uma professora que criticou abertamente a administração de Museveni, por não ter cumprido a promessa que fez em campanha de distribuir absorventes a garotas pobres.

Autoridades obrigaram Uwitware a excluir suas postagens no Twitter e no Facebook, com comentários de apoio à Nyanzi. Ela sofreu ameaças no Facebook e depois foi sequestrada por agressores desconhecidos por pelo menos oito horas, de acordo com o Relatório de Direitos Humanos de Uganda – 2017. Seus sequestradores a questionaram sobre sua relação com Nyanzi, agrediram-na gravemente e cortaram seu cabelo.

Mais tarde, Uwitware foi encontrada em uma delegacia de polícia em Campala. Contudo, autoridades não divulgaram nenhuma atualização sobre a investigação do sequestro dela.

Jornalistas políticos — especialmente aqueles que fazem a cobertura política da oposição — geralmente sofrem mais ameaças do que qualquer outro tipo de jornalista. Mas jornalistas mulheres sofrem ainda mais porque o governo acredita que elas são mais despreparadas e facilmente intimidáveis, de acordo com Mukose Arnold Anthony, Secretário de Segurança de Mídia e Direitos Humanos da Associação de Jornalistas de Uganda, que falou com a Global Voices por WhatsApp no dia 3 de abril.

Quando se trata de assédio sexual on-line, “as jornalistas temem falar sobre o assunto… embora algumas… falem — a maioria acaba morrendo silenciosamente”, Anthony disse.

As jornalistas podem sofrer danos psicológicos extras, violação de privacidade, perda de identidade, limitação de mobilidade, censura e perda de propriedade como resultado de seu trabalho, de acordo com um estudo sobre liberdade de expressão da UNESCO na África, publicado em 2018.

E segundo o estudo de uma Rede de Direitos Humanos para Jornalistas de Uganda de 2018, 12% das jornalistas já sofreram abusos e violações, inclusive ameaças de morte e sequestros. Três quartos das jornalistas mulheres sofreram violações por parte de agentes estatais como policiais, comissários distritais e outros agentes de segurança.

Ataques e assédio

A jornalista ugandense Bahati Remmy sofreu ataques e assédio no trabalho por ser uma repórter mulher. Foto da conta pública de Bahati Remmy no Paydesk, usada com autorização.

 

Bahati Remmy, uma jornalista ugandense, que agora trabalha nos Estados Unidos, disse à Global Voices que parou de fazer noticiários em Uganda porque se sentiu exausta após uma terrível experiência no país enquanto cobria as eleições de 2016.

A polícia de Uganda sequestrou Remmy enquanto ela fazia uma transmissão ao vivo para a TV privada NBS, para cobrir a prisão domiciliar do político de oposição Dr. Kizza Besigye, na cidade de Kasangati.

Remmy disse à Global Voices:

The police engaged in a running battle not to allow any journalists to cover the story concerning Besigye.

A polícia entrou em uma batalha para não permitir que nenhum jornalista cobrisse a história de Besigye.

De acordo com Remmy, os policiais tocaram seus seios dentro da van da polícia, a despiram na delegacia e tiraram fotos de seu corpo nu.

Ela também foi perseguida e assediada por um policial no Facebook, porque o governo de Uganda achou que ela tinha uma aliança com Besigye para manchar a imagem do país. Ela disse à Global Voices que mensagens anônimas deixadas em sua porta a ameaçavam de sequestro, caso ela se recusasse a revelar a rota de fuga feita por Besigye para deixar sua casa.

Após a detenção de Remmy, a Rede de Direitos Humanos para Jornalistas de Uganda fez uma pesquisa de opinião pública sobre o ocorrido. Eles perguntaram: “A polícia de Uganda afirmou que a repórter da NBS TV, Bahati Remmy, desobedeceu a ordens legais e obstruiu a ação policial, o que levou à sua prisão. Você concorda?”

Magambo Emmanuel escreveu:

It is a lame excuse and total lie because there is video footage that shows how Bahati was arrested. Police should stop shifting their problems to innocent journalists.

Essa é uma desculpa esfarrapada e uma completa mentira, porque há gravações em vídeo que mostram como Bahati foi presa. A polícia deveria parar de transferir suas falhas para jornalistas inocentes.

Davide Lubuurwa escreveu:

…Whoever tries to let the people know how the state is standing is to be arrested. A very big problem is coming to Uganda soon. What bothers me most is that whoever tries to say something that is not in support of the current regime is taken to be a rebel so the Ugandan people must wake up.

…Qualquer um que tente fazer com que as pessoas saibam o que ocorre com o Estado, será preso. Um enorme problema está para acontecer em breve em Uganda. O que mais me incomoda é que quem tenta dizer qualquer palavra que não seja de apoio ao regime atual é considerado um rebelde, portanto as pessoas de Uganda devem acordar.

Várias jornalistas de Uganda não publicam artigos críticos ao governo por medo de ataques e assédio por parte do Estado. Profissionais de mídia disseram que o governo e a polícia às vezes procuram editores e ordenam que eles “não publiquem histórias que retratem o governo negativamente”.

Esses ataques são frequentemente ignorados — especialmente quando ocorrem com mulheres — o que dificulta o entendimento da real dimensão desse problema.

Remmy levou o governo ugandês à Comissão de Direitos Humanos de Uganda, mas até hoje não houve nenhuma atualização sobre seu caso. A comissão não tem autonomia suficiente para se pronunciar em favor daqueles que apresentam queixas contra o governo. Seus sete membros, incluindo seu presidente, são nomeados pelo presidente, com a aprovação do parlamento. “Eles são tendenciosos’’, Remmy disse, e acrescentou: “Eles têm muito trabalho acumulado e a maioria dos casos que eles querem ouvir são casos trazidos pelo governo’’.

Muitas ameaças on-line enfrentadas por mulheres jornalistas estão intimamente relacionadas ao abuso off-line.

Remmy acredita que os direitos, a luta e a dignidade das jornalistas deveriam ser defendidos a todo momento, porque os ataques às mulheres silenciam a mídia como um todo.

Enquanto Uganda planeja eleições presidenciais e parlamentares para 2021, é preciso cessar os ataques e o assédio as jornalistas pelo Estado, uma vez que isso afeta o acesso à informação, a liberdade de expressão e os direitos democráticos dos cidadãos ugandenses.

“A liberdade de imprensa continua sendo um ponto fraco do sistema do país”, Remmy disse à Global Voices.

Este artigo é parte de uma série chamada “A matriz de identidade: regulação da plataforma de ameaças on-line à expressão na África”. Essas postagens questionam o discurso de ódio e a discriminação on-line, baseados em identidade ou idioma, desinformação e assédio (principalmente contra ativistas e jornalistas) predominante nos espaços digitais de sete países africanos: Argélia, Camarões, Etiópia, Nigéria, Sudão, Tunísia e Uganda. O projeto é financiado pelo Fundo de Direitos Digitais da África da Colaboração em Políticas Internacionais TIC para a África Oriental e Austral (CIPESA).

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