
Um funcionário municipal desinfeta superfícies em Túnis, capital da Tunísia. Crédito da foto: blog Lost in Tunis [Usado sob permissão].
Democracias liberais como Estados Unidos, Canadá, países da Europa, Malásia e África do Sul impuseram medidas de emergência que restringiram a mobilidade durante o confinamento. Da mesma forma, na região do Oriente Médio e Norte da África (MENA), as autoridades declararam estado de emergência e decretaram medidas excepcionais como toques de recolher e confinamento em casa.
Em uma região assolada por décadas de instabilidade e conflitos, as autoridades usam há muito tempo mecanismos de emergência excepcionais e temporários para justificar a repressão e restringir os direitos humanos. Com base nesse precedente, agora vários governos usam a crise do coronavírus para reprimir ainda mais os direitos humanos — principalmente a liberdade de expressão.
O que é estado de emergência?
Quando confrontados com uma ameaça iminente como uma doença ou um desastre natural, os governos podem declarar estado de emergência de forma legal, o que permite as autoridades exercerem poderes excepcionais temporariamente. Isso pode incluir a suspensão de direitos humanos e liberdades básicos, como a restrição de circulação ou o banimento de reuniões públicas.
Entretanto, “os governos devem informar a população com exatidão sobre sua extensão substantiva, o alcance territorial e temporal, e as medidas relacionadas”, quando ativam tais medidas forem postas em prática, segundo o Escritório do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos (EACDH):
Emergency powers should not be a weapon governments can wield to quash dissent, control the population, even perpetuate their time in power. They should be used to cope effectively with the pandemic, nothing more, nothing less. says @UNHumanRights Chief https://t.co/xUufH1WJGc pic.twitter.com/LC40UJk1ut
— Inter Press Service (@ipsnews) May 3, 2020
Poderes de emergência não devem ser uma arma que governos possam usar para anular dissidências, controlar a população, ou mesmo perpetuar a sua duração no poder. Eles devem ser usados para lutar efetivamente contra a pandemia, nada mais, nada menos, diz o chefe da @UNHumanRights
Segundo o direito internacional de direitos humanos, há limites ao que um estado de emergência concede aos governos. O EACDH recomenda que “todas as medidas tomadas num estado de emergência sejam proporcionais e limitadas àquelas estritamente necessárias às exigências da situação. (…) O Exército não deve exercer funções de policiamento.”
Alguns direitos humanos básicos não podem ser suspensos. Isso inclui “o direito à vida, proibição da tortura e maus-tratos, proibição da discriminação e liberdade religiosa. Também o direito de um julgamento justo e a não sofrer detenção arbitrária, bem como o direito à revisão judicial da detenção,” disse a Human Rights Watch em 20 de março, em resposta à declaração de estado de emergência da Jordânia.
MENA declara poderes de emergência rapidamente
Na região do MENA, os governos foram rápidos ao reagir e exercer plenos poderes, mesmo quando havia poucos casos de Covid-19.
No dia 5 de março, o presidente palestino Mahmoud Abbas declarou estado de emergência por 30 dias depois que casos de coronavírus foram notificados em Belém. Em 13 de março, a Mauritânia seguiu o exemplo e declarou estado de emergência após a notificação do primeiro caso no país.
Em 16 de março, foi a vez do Sudão declarar estado de emergência após a morte de um paciente por Covid-19. No dia seguinte, o rei da Jordânia, Abdullah II, emitiu um decreto real concedendo amplos poderes ao seu primeiro-ministro, incluindo a possibilidade de “monitorar o conteúdo de jornais, propagandas e de qualquer outra forma de comunicação antes de sua publicação, e de censurar e suspender qualquer meio de comunicação sem justificativa.”
No Marrocos, no dia 20 de março, o rei Mohamed VI declarou estado de emergência, permitindo que o governo “tomasse todas as ações necessárias para combater a epidemia de Covid-19.”
Os governos puderam adotar medidas excepcionais rapidamente, impondo confinamentos gerais e toques de recolher, banindo encontros públicos, fechando escolas, negócios e tribunais por meio de decretos sem supervisão parlamentar ou judicial.
De temporário a permanente
Enquanto essas medidas podem ser justificadas para conter a disseminação do vírus, os poderes de emergência carregam o risco de minar o estado de direito.
Particularmente na região do MENA, os governos e os regimes autoritários possuem antecedentes de abusar do estado de emergência para suspender instituições democráticas e direitos humanos por longos períodos.
Por exemplo, alguns governos na região tiraram vantagem da “guerra ao terror” para estender os seus poderes, tornando o que deveria ser um estado de emergência temporário em permanente por décadas.
A Argélia esteve sob regras de emergência por 20 anos após um confronto brutal com militantes islâmicos na década de 1990. Protestos pacíficos foram proibidos, liberdades políticas foram reprimidas, a imprensa foi censurada e as detenções arbitrárias tornaram-se comuns. Acabou somente com a Primavera Árabe em 2011.
O Egito esteve sob estado de emergência contínuo por três décadas, após o assassinato do então presidente Anwar al-Sadat em 1981. Manifestantes exigiram o fim do estado de emergência durante a Primavera Árabe e enfim conseguiram sua derrubada em 2012. Porém, em janeiro de 2013, uma lei de emergência foi reintroduzida pelo já falecido presidente Mohamed Morsi — deposto num golpe militar em 2013 — para coibir novas agitações populares.
Desde então, o Egito tem alternado entre períodos de situação de não emergência e emergência, regularmente estendidas desde 2017, quando houve ataques terroristas em duas mesquitas. Essas medidas de emergência resultaram em abusos de poder sistemáticos usados para restringir encontros públicos, liberdade de imprensa e para deter pessoas por qualquer período de tempo e por praticamente qualquer motivo.
O Egito continua no final da lista dos índices de direitos humanos, aparecendo na posição 166 no Índice de Liberdade de Imprensa, por exemplo.
A Tunísia está sob estado de emergência desde 2015, após um ataque terrorista contra um ônibus que levava guardas presidenciais. A medida foi continuamente estendida, levando o relator especial das Nações Unidas sobre os direitos humanos declarar, em 2017, que era uma violação do direito internacional.
A tentação do abuso de poder
Na região do MENA, as Forças Armadas têm desempenhado um papel central na aplicação de medidas contra a Covid-19, e a repressão à liberdade de expressão aumentou.
Em março de 2020, autoridades de países como Jordânia, Argélia, Emirados Árabes, Omã, Marrocos, Arábia Saudita e Iêmen emitiram decretos banindo jornais impressos por tempo indeterminado, apesar de não haver correlação entre os jornais e a Covid-19.
Vários governos também adotaram amplas leis de crimes cibernéticos para criminalizar a desinformação e as fake news. Em abril de 2020, o governo argelino aprovou uma lei que criminaliza as “fake news” consideradas perigosas à “ordem pública e segurança do Estado“.
O combate à desinformação tem sido usado na região como justificativa para criminalizar quem publique conteúdos que desafiem a narrativa oficial do Estado. O Marrocos deteve e condenou pelo menos uma dezena de pessoas por “espalharem rumores” ou disseminarem “fake news” sobre a Covid-19 nas redes sociais.
Mesmo em países que conseguiram frear a propagação do vírus, os estados de emergência continuam a vigorar sem haver previsão de quando a situação voltará ao normal. A Jordânia e a Tunísia ainda aplicam toques de recolher noturnos, embora o coronavírus esteja “contido“, com a desculpa de temerem uma segunda onda.
No Oriente Médio, o combate ao terrorismo costumava ser usado como escudo sob o qual os estados de emergência eram justificados e mantidos. Agora, a Covid-19 serve como uma nova justificativa para o uso de plenos poderes.
Encontrar um equilíbrio entre segurança nacional e direitos fundamentais é uma área cinzenta que dá margem para interpretação.
A tentação do abuso de poderes quando os cidadãos estão mais vulneráveis e necessitam proteção é real. Um sistema forte de freios e contrapesos deve defender os direitos fundamentais durante uma emergência. Em última análise, “o teste de toda nação é como ela trata seus cidadãos em tempos de crise”, disse Michael Page, vice-diretor da Human Rights Watch no Oriente Médio.