Há mais de dois anos, a província de Cabo Delgado em Moçambique enfrenta ataques sucessivos de grupos armados desconhecidos. A prática incide em assassinatos e destruição de bens públicos e privados, e são recorrentes relatos de habitantes que se encontram deslocados.
Mais de 900 pessoas foram assassinadas desde o início dos ataques, segundo o Projecto para Localização e Eventos de Conflitos Armados (ACLED). Em Fevereiro, o Governo provincial de Cabo Delgado divulgou um relatório afirmando que mais de 150.000 mil pessoas já foram afectadas pelo conflito.
Os últimos ataques deram-se no final do mês de Março e início de Abril de 2020 e, após um deles, um distrito foi ocupado temporariamente pelos agressores.
Enquanto a motivação do grupo permanece desconhecida — ainda que chamado pela população local de “Al Shabab,” não se sabe se há conexão com o grupo Al Shabaab da Somália –, um vídeo divulgado no dia 7 de Abril parece dar algumas pistas.
Gravado na aldeia Ntchinga, o vídeo mostra os insurgentes carregando uma bandeira do Estado Islâmico e um líder se dirigindo nas línguas kimwan e kiswahili à população local, a qual aparenta ter reunido em comício.
Segundo o portal Voz da América, o vídeo sugere uma mudança de estratégia do grupo ao aparentemente tentar buscar apoio dos nativos.
Segundo o mesmo portal, estas são as palavras ditas no vídeo:
Nós queremos que seja respeitada a lei islâmica. Cabo Delgado nos pertence e vamos impor o Estado Islâmico, está bem?
Aqui entramos duas vezes, e desta, como todos vocês viram, não matamos ninguém e nem destruímos nada, e vamos vos deixar em paz.
Se vocês continuarem a colaborar com o Governo a denunciar-nos e a não seguir o islão, voltaremos uma terceira vez e vamos queimar tudo e matar todos, deixar isto vazio, está bem?
Dias após a divulgação do vídeo, os agressores destruíram uma igreja católica na região. Em seguida, o Papa Francisco pediu bênção para a população de Cabo Delgado:
Interior of the #Nangololo #Catholic mission, in Muidumbe district, vandalized, Thursday, by the #ViolentExtremists who have been terrorizing communities, and targeting military barracks, for two years, in #CaboDelgado, northern Mozambique. @CDD_Moz @TamukaKagoro77 @zenaidamz pic.twitter.com/hxdymq7evT
— Prof. Adriano Nuvunga, Ph.D. (@adriano_nuvunga) April 11, 2020
Em reacção, o Governo central voltou a referir que tais ataques devem cessar e os seus autores devem ser presos e condenados:
O Governo condena veemente os hediondos e violentos ataques e continuará a perseguir todos os assassinos, levando-os, como está a acontecer, à barra da justiça
Também em meio aos ataques, ecoam notícias de desaparecimento de jornalistas na região. O último a desaparecer foi um locutor de uma rádio local, de acordo com a notícia da RFI em português.
De acordo com as informações do MISA-Moçambique Ibraimo Mbaruco saiu de casa para a Rádio por volta das 15,00 horas do dia 7 de Abril em curso, onde esteve a trabalhar até cerca das 18,00 horas do mesmo dia. O jornalista teria sido sequestrado quando regressava a casa, entre as 18,00 e 19,00 horas.
Esta instituição refere ainda que momentos antes, Ibraimo Mbaruco teria enviado uma curta mensagem (SMS) a um dos seus colegas de trabalho, informando que estava cercado por militares. A partir desse momento, não mais atendeu às chamadas, embora o seu telefone continuasse a dar sinal de estar ainda comunicável.
Em um relatório publicado no dia 13 de Abril, o Instituto de Estudos Económicos e Sociais (IESE), através do pesquisador Sérgio Chichava, apresentou algumas hipóteses sobre a natureza e motivação do grupo.
Chichava argumenta que tudo indica que o país está perante a presença de um grupo radical islâmico, que pretende impor a lei islâmica.
Entretanto, mais pesquisa é necessária para se compreender as diferentes mutações pelas quais o grupo passou ao longo dos últimos dois anos e meio, e as razões pelas quais optou pela via militar para alcançar o seu objectivo, após inicialmente ter privilegiado acções não violentas.
Quem é o “inimigo” que ataca Cabo Delgado? É o +recente #IDeIASn_127 de @schichava, que apresenta as diferentes hipóteses do governo moçambicano sobre a identidade e os objectivos do grupo que, desde 5 de Outubro de 2017, ataca a província. Leia-o aqui: https://t.co/7CROm9c85H pic.twitter.com/z5f5lwOI3q
— IESE (@IESE1) April 13, 2020
Recentemente, um grupo de artistas locais lançou uma música em língua local para apelar que os ataques cessem naquela província do norte de Moçambique:
A primeira música https://t.co/s6KVAhgrCZ que acompanho condenando os ataques de #CaboDelgado. O grupo é de Mueda e canta em Maconde, Swahili e Português.
CORO:
Porquê nos matam, nos cortam como se fôssemos galinhas, porquê nos matam, nos injustiçam porquê. O que fizemos?! pic.twitter.com/oiwQCgvRRn
— Alexandre (@AllexandreMZ) April 15, 2020
Já o Centro para Democracia e Desenvolvimento (CDD) chama atenção ao facto de se perder o controlo da situação e provocar-se uma crise maior em toda a região da África Austral:
Há uma necessidade da intervenção da SADC (comunidade de países da África Austral), é verdade que a SADC é aquela entidade que todos nós conhecemos, amorfa, mas tem que ser mobilizada para intervir aqui.