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#NiñasNoMadres: argentinos protestam contra gravidez forçada de meninas

Categorias: Argentina, Direitos Humanos, Mídia Cidadã, Mulheres e Gênero

Créditos da foto: Emergentes [1]/Flickr, feita durante manifestação em 11 de maio de 2018. Sob licença CC.  [2]

Confira a cobertura especial da Global Voices sobre a violência de gênero na América Latina [3].

Os únicos países da América Latina [4] onde o aborto é legalizado são Cuba, Uruguai e alguns estados do México. Na Argentina, o aborto só é permitido em duas circunstâncias [5]: quando a gravidez oferece riscos à vida da mãe e quando a gravidez é resultante de estupro.

Em 19 de fevereiro, ativistas pró-escolha fizeram uma manifestação em frente ao Congresso Nacional da Argentina, na capital Buenos Aires, pela aprovação da lei que tornaria o aborto totalmente legalizado. Os manifestantes também pediram que o direto ao aborto, nas circunstâncias que já são permitidas pelas leis argentinas, seja respeitado.

Os manifestantes relembraram a história de Lucía [6], uma menina de 11 anos, forçada por médicos, líderes religiosos e autoridades legais a manter uma gravidez depois de ser estuprada pelo companheiro da avó. O caso chocou a Argentina e se tornou um símbolo da luta pelo direito ao aborto seguro no país.

Na Argentina, a idade de consentimento é 13 anos, e a legislação considera qualquer relação sexual [7] com menores abaixo dessa idade como estupro. Os ativistas tentaram conscientizar sobre esse fato: “Uma menina grávida é uma menina estuprada [8]“, diz uma campanha pró-escolha.

O destino de Lucía

Lucía, pseudônimo criado para proteger a segurança da vítima, estava sofrendo de dores de estômago quando sua mãe a levou para uma clínica em uma área rural da província de Tucumán, norte da Argentina. Os médicos descobriram que ela estava grávida de 19 semanas.

A mãe de Lucía, então, a levou para um hospital da província para que ela fizesse um aborto, segundo relato da mãe à imprensa [9]. Mas a equipe médica se recusou a interromper a gravidez de Lúcia, alegando objeção de consciência [10], o que significa que eles consideravam o procedimento ofensivo para seus valores e crenças pessoais.

Segundo a mãe, os médicos argumentaram que o aborto colocaria a vida de Lucía em perigo e a criança foi pressionada a manter a gravidez. Ela contou ainda que um grupo de pessoas fora do hospital acusou-as de “assassinas” quando elas estavam saindo.

A história de Lucía se espalhou rapidamente na província. Vigílias religiosas [11] foram organizadas na cidade da menina para “impedir o aborto”. O arcebispo da província convocou [12] os fiéis para “proteger toda vida humana” em uma mensagem de áudio que viralizou nas redes sociais. Ele chegou até mesmo a revelar o verdadeiro nome de Lucía [13] na gravação. Enquanto isso, grupos pró-vida protestavam [14] na capital da província de San Miguél de Tucumán, insistindo que a criança, sobrevivente de um estupro, mantivesse a gravidez “pelo bem do bebê (em gestação)”.

Na época, o tribunal regional ordenou [15] que o hospital fizesse o aborto. Lucía estava com seis meses de gestação. Foi feita uma cesariana em 26 de fevereiro de 2019. O recém-nascido morreu dez dias depois, por complicações respiratórias. A morte coincidiu com o Dia Internacional da Mulher [16], dia 8 de março.

O Partido Democrático Cristão [17] da Argentina, que é apoiado por grupos religiosos e fundamentalistas, acusou os médicos [18] que fizeram o aborto de assassinato.

Duas semanas depois, o tribunal da vara da família de Tucumán decidiu [19] que o recém-nascido, falecido, não seria registrado como filho de Lucía, já que a menina “não possuía vontade de procriação ou vocação para maternidade”.

“Viva sorrindo, viva brincando: em um mundo justo, meninas não são mães”. Imagem de Distribution Network [20], utilizada sob permissão.

Meninas grávidas da Argentina e de todo o mundo

Segundo Gabriel Castelli, secretário nacional para Crianças, Adolescentes e Família, o número de meninas grávidas diminuiu [21] 20% entre 2015 e 2018. Ainda assim, 87.188 adolescentes engravidaram no país em 2018. A maioria dos casos de gravidez com menores de 15 anos é resultante de abuso sexual dentro da família, segundo a sociologista Silvina Ramos [21].

Complicações durante a gestação ou após tentativas não-seguras de aborto, assim como obstruções durante o trabalho de parto, são as principais causas de morte de meninas entre 15 e 19 anos em todo o mundo [22], segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).

Na América Latina e no Caribe, 30% das mulheres grávidas têm menos de 18 anos de idade [23]. A América Latina é a única região no mundo [24] onde a gravidez de meninas está crescendo, segundo a campanha Niñas, no madres [25] (Meninas, não mães).

A mesma campanha denunciou muitos países latino-americanos [26] na Comissão de Direitos Humanos da ONU, por diversos casos de meninas que foram impedidas de ter acesso a abortos legais e aos meios necessários para prevenir a gravidez indesejada.

Protocolos para ajudar as outras Lucías?

O caso de Lucía chamou a atenção da mídia internacional [27] e das ONGs [28] de direitos humanos.

Em março de 2019, o Escritório do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos (EACDH) pediu [29] que a Argentina garantisse às vítimas de estupro o acesso a abortos seguros.

“Minha mãe diz que, se você pensa que sou muito jovem para usar um lenço verde (simbolo pró-aborto), então é porque você consegue me imaginar sendo forçada a dar à luz. #TransformeEmLei #AbortoLegalizadoJá #AbortosSeguros #AbortosGratuitos”. Imagem de @lulidibuja [30], utilizada sob permissão.

Alguns meses depois, seis organizações de direitos humanos testemunharam [31] contra a Argentina na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), por “não cumprir com suas obrigações perante as leis internacionais e regionais de direitos humanos, com relação ao acesso a abortos legais para vítimas de violência sexual, particularmente meninas”.

Em 2012, o Supremo Tribunal da Argentina ratificou [32] o direito ao aborto em casos de estupro. Em dezembro de 2019, o Ministério da Saúde, do recém-eleito presidente Alberto Fernández, [33] decretou um protocolo [34] para que os hospitais garantam aos pacientes o acesso ao aborto em circunstâncias legais.

Ainda assim, apenas 10 das 23 [35] províncias argentinas possuem protocolos adequados ou aderiram ao protocolo nacional.

Segundo o site da Chequeado [35], uma agência argentina de checagem de fatos, “a falta de protocolo não significa que abortos legais não possam ocorrer nessas províncias, já que é um direito. Porém, a falta de protocolos que acompanha a decisão do Supremo Tribunal impede o acesso real de mulheres a esse direito”. 

O caso de Lucía é a prova viva de que a lei, por si só, não é suficiente para proteger crianças como ela [36].

Quase um ano depois, em 14 de fevereiro de 2020, o estuprador de Lucía foi sentenciado [37] a 18 anos de prisão. Em uma carta emocionada [38], a mãe expressou gratidão pelo apoio recebido pela família e seu desejo de que outras meninas não enfrentem os mesmos obstáculos.

Durante o protesto em 19 de fevereiro, o coletivo chileno Las Tesis adaptou a letra de sua conhecida canção [39] “Um estuprador no seu caminho”(ou “O estuprador é você”): 

Duerme tranquila mi niña madre,
Sin que te importe quién te violó,
Que por tu hijo, bebé inocente,
Vela la Santa Inquisición.

Dorme tranquila minha menina mãe,
Não se preocupe com quem te violou,
Pelo seu filho, bebê inocente,
Vela a Santa Inquisição.