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O movimento feminista venezuelano cresce em face à negligência dos políticos.

Categorias: América Latina, Venezuela, Mídia Cidadã, Mulheres e Gênero, Política, Protesto, The Bridge
Multidão de mulheres vestidas de preto desfila pelos direitos das mulheres.

Manifestação do dia 8 de março de 2020, em Caracas, Venezuela. Cortesia de Uquira, usada sob permissão.

Leia a cobertura especial da Global Voices sobre a luta das mulheres contra a violência de gênero na América Latina. [1]

Na Venezuela, as feministas parecem ter obtido o que nenhum outro movimento conseguiu alcançar em 20 anos nesse país: superar as divisões políticas e denunciar a situação cada vez mais precária das venezuelanas.

Em 2019, 391 mulheres foram mortas na Venezuela, segundo um banco de dados organizado [2] por uma equipe local de jornalistas, a partir de artigos em meios digitais, na falta de relatórios oficiais.

Mas a situação das mulheres na Venezuela é também uma crise dentro da crise. Especialistas em ajuda humanitária classificam [3] a Venezuela na categoria de urgência humanitária complexa [4], que significa tratar-se de uma crise política ou politizada, de origem humana e que produz uma grave escassez de medicamentos (dentre os quais os contraceptivos), de bens de consumo (tais como produtos de higiene pessoal) e de alimentos. A isso somam-se 16.506 mortes [5] por causas violentas em 2019, que fazem da Venezuela um dos países mais violentos da região e do mundo. O quadro explica o porquê de 4,9 milhões [6] de venezuelanos terem deixado o país, sejam como imigrantes ou como refugiados.

Assiste-se, desde 2014, a numerosas manifestações pela derrubada do presidente Nicolás Maduro, acusado de corrupção e de incompetência. Em 2019, Juan Guaidó autoproclamou-se presidente interino, o que polarizou ainda mais o país.

É nesse agitado contexto que todo movimento social é facilmente rotulado como “pró-Maduro” ou “pró-oposição”.

Em dezembro de 2019, parecia que as feministas haviam se dividido da mesma maneira, pois grupos de mulheres se organizaram [7] em manifestações separadas, para dançar e cantar o hino Um estuprador em seu caminho, do coletivo feminista chileno La Tesis, como faziam outros grupos feministas, à mesma época, [8] em vários outros países. As manifestantes pró e contra o governo haviam se recusado a cantar juntas.

Manifestante nua da cintura para cima recebe inscrição sobre o corpo.

Manifestação do 8 de março de 2020, em Caracas, Venezuela. Cortesia de Uquira, reproduzida com autorização.

Entretanto, em 8 de março de 2020, por ocasião do Dia Internacional da Mulher, tornou-se claro que as feministas do país precisavam superar suas diferenças políticas. Assim, o coletivo feminista Uquira organizou [9] uma marcha à qual se juntaram organizações de tendências políticas variadas, como as Comadres Purpuras [10], a Rede de mulheres da Anistia Internacional [11], Fundamujer [12]Hermanas Naturales [13], WeLab Venezuela [14], Aliadas en Cadena [15], Feminismo Inc [16], En Tinta Violeta [17], Faldas-R [18], Araña Feminista [19] e outras mais.

O número de participantes foi modesto, pouco mais de cem pessoas [9], mas cresce a cada ano.

As militantes do coletivo Comadres Púrpuras afirmaram, em um tuíte [20], sua recusa em serem usadas, quer seja pelo governo, quer seja pela oposição.

Nossa proposta e nosso projeto têm por objetivo a reconstrução do tecido social, que foi utilizado por uma lógica propagandística, tanto pelas autoridades oficiais quanto pela oposição tradicional.

[cartaz] 9M juntas, encontro de mulheres: o que é ser trabalhadora, hoje, na Venezuela?

Agendas políticas pouco favoráveis

As feministas venezuelanas denunciam a ausência de ações preventivas contra os feminicídios e punições aos agressores, apesar de a reforma de 2014 [27] reconhecer o feminicídio como crime. Dentre as 554 mortes de mulheres assim reconhecidas ao longo dos dois últimos anos, houve apenas 119 condenações [28]. No papel, a Venezuela conta com uma legislação adequada ao combate das violências de gênero, mas não há publicação de orçamentos, nem força policial suficiente.

Além das violências de gênero, a vulnerabilidade econômica das mulheres parece, igualmente, ter unido as feministas. O salário mínimo mensal é menos de US$ 4,00 [29], o que inviabiliza o acesso das mulheres aos artigos de primeira necessidade, serviços de saúde, contraceptivos e as obriga, da mesma forma, a permanecer em relações violentas ou a emigrar em condições precárias, que as expõem à exploração sexual e aos abusos.

As feministas querem recuperar os espaços ocupados pelos partidos políticos dominantes, já que nem o governo, nem a oposição parecem capazes de resolver os problemas relacionados às violências de gênero.

O plano nacional [30] de Guaidó, programa político que guiará o país se ele chegar à presidência oficial do país, não menciona nada sobre o combate às violências contra as mulheres, nem propõe quaisquer medidas a fim de resolver os problemas específicos a que são submetidas as mulheres no regime atual.

O governo Maduro se apresenta como feminista, mas é caracterizado, de fato, pelas instituições ineficazes e por uma indiferença geral. A ministra para Mulheres e Igualdade de Gênero, Asia Villegas, abordou [31] a questão das violências de gênero na Colômbia e no México, durante um evento oficial do governo em 8 de março, sem fazer uma menção sequer à situação de seu próprio país.

Manifestantes no Dia da Mulher empunhando cartazes.

Lê-se nos cartazes: “As violências feitas às mulheres são crimes”, “Corajosa”, “Nem uma a menos”. Manifestação do 8 de março de 2020, em Caracas, Venezuela. Cortesia de Uquira, usada sob permissão.

Em 2014, o Comité das Nações Unidas para a Eliminação da Discriminação Contra as Mulheres fez recomendações [32]  ao governo Maduro, incitando-o a pôr em prática mudanças destinadas a descriminalizar o aborto sob certas condições, a reduzir a taxa de gravidez entre adolescentes (95 a cada 1000 mulheres [33] entre 15 e 19 anos engravidam na Venezuela, a taxa mais alta depois da de Honduras), a reduzir a mortalidade materna e a adotar medidas concretas contra as violências de gênero.

Em novembro de 2018, a Corte Interamericana de Direitos Humanos concluiu [34] que a Venezuela era responsável por ter “facilitado atos de tortura e de escravidão sexual” à conhecida advogada e ativista dos direitos das mulheres Linda Loaiza [35]. Um ano depois, em 18 de novembro de 2019, Loaiza se queixava [36] que a Venezuela ainda não havia posto em prática as medidas compensatórias ordenadas pela Corte.

No meio da multidão, duas manifestantes encapuzadas seguram um cartaz.

Lê-se no cartaz: “Estamos em rebelião”. Manifestação do 8 de março de 2020, em Caracas, Venezuela. Cortesia de Uquira, usada sob permissão.

No dia 8 de março, as mulheres também reivindicaram o direito ao aborto. A interrupção voluntária da gravidez é uma atividade clandestina em razão das restrições legais do país, uma das legislações mais conservadores [37] da região. Os abortos sem acompanhamento médico seriam responsáveis por aproximadamente 20% dos óbitos maternos, segundo um relatório de 2019 [38] da Alta Comissária das Nações Unidas, Michelle Bachelet. Ademais, um relatório de 2016, o último ano em que os relatórios foram tornados públicos, constatava uma alta de 66% do número de óbitos femininos [39]  por motivo de complicações na gravidez, em relação aos anos anteriores. Diferentes grupos militantes apresentaram uma proposta de lei [40] para descriminalizar o aborto em junho de 2018, ainda sem efeito.

Alguns dias antes do Dia Internacional da Mulher, o presidente Maduro declarou [41] que “as mulheres deveriam ter seis filhos cada e aumentar a população do país”, uma afirmação completamente irresponsável em vista das cifras acima demonstradas.

Exceto Henrique Capriles, ex-governador e candidato às eleições presidenciais de 2012, que defendeu [42] o aborto terapêutico, nenhum líder da oposição jamais fez qualquer declaração sobre o assunto.

Um grupo de manifestantes empunha cartazes em forma de pedra tumular.

“O Estado não cuida de mim! São minhas amigas que cuidam!” Manifestação do 8 de março de 2020, em Caracas, Venezuela. Cortesia de Uquira, usada sob permissão.

No dia 8 de março, como nem o governo, nem a oposição demonstravam qualquer interesse em impedir a violência contra as mulheres, as feministas venezuelanas, de diferentes matizes políticas se reuniram para dizer:

El Estado no me cuida! Me cuidan mis amigas!

“O Estado não cuida de mim! São minhas amigas que cuidam!”

Consulte o dossiê especial da Global Voices sobre a luta contra as violências de gênero na América Latina [43].