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Esta biblioteca comunitária está mudando a narrativa de caos em Cité Soleil, no Haiti

Categorias: Caribe, Haiti, Boas Notícias, Desastre, Desenvolvimento, Economia e Negócios, Educação, Juventude, Mídia Cidadã, Política

Membros da comunidade de Cité Soleil em Porto Príncipe, no Haiti, estão construindo uma biblioteca comunitária tijolo por tijolo, centavo por centavo, transformando a narrativa de caos nesta região empobrecida. Foto cedida por Konbit Bibliyotèk Site Solèy [1] via Facebook.

Cité Soleil, uma região empobrecida da capital haitiana, Porto Príncipe [2], é geralmente associada ao desespero urbano, pobreza, ilegalidade e caos.

Conhecida como Site Solèy [3] em crioulo haitiano [4], a vasta área concentra as dificuldades que se assolaram o Haiti como um todo nas últimas três décadas: analfabetismo, desemprego, infraestrutura decadente, falta de saneamento, políticas públicas ineficientes e violência de gangues.

Depois do terremoto devastador de 2010, uma geração de jovens ativistas, a maioria nascida em Cité Soleil, deu início a um movimento social para desafiar estas narrativas ultrapassadas de derrotismo e caos.

O grupo, Konbit Soley Leve (Trabalhando Juntos, Soleil se Levantará), tinha o objetivo de aproveitar o momento pós-terremoto e o discurso nacional de reconstrução para reconstruir e transformar Cité Soleil.

O movimento levou à criação da Konbit Bibliyotek Site Soley [5] (KBSS), um projeto de biblioteca comunitária iniciado em novembro de 2016. A  biblioteca está reescrevendo e renovando antigas narrativas sobre Cité Soleil, de marginal e instável para comunitária e enérgica – como um bom exemplo de como o Haiti pode se reconstruir.

O Konbit Soley Leve uniu-se ao Flanm'Art Club Haiti [6], um grupo cultural de jovens em Cité Soleil que procurou o Konbit com a esperança de realizar o sonho de uma biblioteca. Eles “queriam um espaço para reunir estudantes, pesquisar, ler, escrever e discutir sobre livros”, segundo o site da biblioteca.

Em 2017 – depois de apenas sete semanas – um comitê organizador da biblioteca com 12 pessoas coletou 500.000 gourdes haitianos (cerca de US$ 5.000) junto à comunidade.

O forte apoio da comunidade levou os membros da KBSS a elaborar um projeto ainda mais ambicioso.

Eles escolheram Place Fierte, um parque público em Cité Soleil, como local ideal para o projeto, e o comitê contatou o prefeito, vários parlamentares e o Ministério de Segurança Nacional, que autorizaram legalmente a construção da biblioteca no local escolhido.

A arquiteta nascida em Cité Soleil, Jennifer Andou, projetou o prédio em 2017, enquanto a Miyamoto Relief, uma instituição sem fins lucrativos de engenharia de desastres, está fornecendo os conhecimentos necessários para tornar a construção resistente a terremotos, e também instalando painéis solares e sistemas de aproveitamento de água.

Geotechsol [7], uma empresa especializada em avaliação de solo, avalizou a segurança do solo para o início da construção em 2017 e as fundações da biblioteca foram lançadas em 30 de janeiro de 2018. A construtora ADCOSA está atualmente executando o projeto.

Membros da comunidade doam ativamente para o projeto da biblioteca de Cité Soleil. O projeto da biblioteca aparece ao fundo. A Konbit Bibliyotèk Site Solèy posta constantemente fotos de doadores para gerar transparência e encorajar novas doações para concluir a biblioteca. Foto cedida por Konbit Bibliyotèk Site Solèy [1] via Facebook.

Mudando a narrativa

Originalmente construída nos anos 1950, a Cité Soleil foi chamada Cité Simone em homenagem à esposa do presidente François Duvalier [8]. Quando um êxodo em massa de haitianos abandonou a zona rural e se mudou para a região em busca de melhores empregos, as habitações de baixo custo da Cité Simone não foram capazes de absorver a demanda. Nos anos 1990 [9], houve uma redução nos postos de trabalho nas fábricas e barracos começaram a surgir por toda a parte.

O governo não mostrou interesse em construir infraestrutura ou fornecer serviços sociais em Cité Soleil. Com aproximadamente 500.000 pessoas vivendo em total desespero socioeconômico, em uma área [9] de oito milhas quadradas (21 quilômetros quadrados), Cité Soleil degenerou-se em terreno fértil para violência política e guerra de gangues.

Em 2004, depois do afastamento [10] do presidente Jean-Bertrand Aristide, o governo, com apoio das forças de manutenção da paz da Organização das Nações Unidas, tentou enfrentar as gangues, o que resultou na morte de muitos civis. O número de mortes nunca foi confirmado, mas foi relatado que durante uma operação de sete horas na Cité Soleil [11], em julho de 2005, as forças da ONU utilizaram 22.000 balas.

Cerca de duas décadas depois, Cité Soleil ainda é sinônimo de crime e violência no imaginário coletivo haitiano, uma impressão que foi solidificada pelos efeitos devastadores do terremoto de 2010 [12] que atingiu o país.

Membros da comunidade de Cité Soleil posam lendo livros em frente ao local das obras onde está sendo construída a biblioteca comunitária. Foto cedida por Konbit Bibliyotèk Site Solèy [1] via Facebook.

Mas os projetos da Konbit Soley Leve, como a biblioteca comunitária, contribuem para um discurso mais amplo de construção nacional para transformar as percepções mais comuns sobre a região.

Em entrevista pelo telefone, Louino Robillard, membro fundador da Konbit Soley Leve e coordenador-chefe do projeto da biblioteca, contou à Global Voices que a ajuda pós-terremoto na região não era sensível aos conflitos ou desafios de desenvolvimento.

Iniciativas de trabalho remunerado e outros projetos lucrativos eram controlados por líderes de gangues. Ativistas e outros agentes de desenvolvimento da comunidade eram excluídos. No fim, estes projetos geraram ainda mais violência e desespero.

Em 2014, cansados desse círculo vicioso, Robillard  e outros ativistas lançaram o Site Solèy Peace Prize, [13] “uma iniciativa anual para homenagear jovens comuns que estão fazendo coisas extraordinárias para tornar a vida melhor para seus vizinhos em Cité Soleil”, segundo Robillard.

O projeto da biblioteca foi uma surpresa para Robillard, principalmente por conta das necessidades imediatas básicas, como comida e abrigo, que têm sido um desafio enorme em Citè Soleil.

Mas a biblioteca KBSS prospera por ser a antítese da maioria dos projetos de desenvolvimento no Haiti, que são comumente contaminados pela corrupção e falta de transparência. A biblioteca tem um modelo de financiamento diferente, com 80% dos recursos e dinheiro arrecadados diretamente junto à comunidade.

Toda doação é divulgada em relatórios semanais publicados tanto na página do Facebook da KBSS como na conta do Twitter.

Relatório semanal nº 153 @kbsshaiti [14] pic.twitter.com/eX3AIJ8dmD [15]

Flash! #Hald_Saint_Hilaire fè yon donasyon #100_Goud pou avansman konstriksyon pwojè Konbit Bibliyotèk Site Solèy la.

Geplaatst door Konbit Bibliyotèk Site Solèy [17] op Donderdag 9 januari 2020 [18]

#Hald_Saint_Hilaire donate #100 _ gourdes for the construction of the Konbit Bibliyotèk Site Solèy [19] project.

#Hald_Saint_Hilaire doou #100 _ gourdes para a construção do projeto Konbit Bibliyotèk Site Solèy [19].

Robillard disse que o objetivo é ter 10.000 doadores para o projeto, com a mensagem subjacente de que se 10.000 pessoas podem juntar as mãos para construir uma biblioteca sustentável, inovadora e à prova de desastres em Cité Soleil, 11 milhões de pessoas podem se unir para reconstruir uma nação.

Em junho de 2019, a KBSS convidou o famoso escritor haitiano Dany Laferrière [20] para visitar e colocar um tijolo na construção. Laferriere é autor do livro “Tout bouge autour de moi”, ou “Tudo se move ao meu redor”, escrito logo após o terremoto. Sua visita demonstrou o compromisso da biblioteca em tornar o Haiti e o resto do mundo um lugar de esperança, criatividade e desenvolvimento:

Vizit akademisyen Dany LAFERRIERE nan Konbit Bibliyotek Site Soley [21]

Dimanch 16 Jen Konbit Bibliyotek Site Soley te resevwa vizit akademisyen , Imotel Dany LAFERRIERE.

Geplaatst door Konbit Bibliyotèk Site Solèy [17] op Maandag 17 juni 2019

Apesar do apoio da Miyamoto Relief e de empresas privadas como CEMEX [22], E-Power  [23]ou SOGENER, [24] a KBSS tem intenção de continuar como um projeto comunitário.

Haitianos por todo o Haiti e no exterior – assim como não haitianos – estão abraçando o projeto e querem ajudar as pessoas de Cité Soleil a alcançar seu sonho de construir a maior biblioteca moderna do Haiti.

Mais do que isso, uma década depois do terremoto, a KBSS quer ser vista como um modelo alternativo de reconstrução, desenvolvimento e sustentabilidade no Haiti, fazendo sua parte para refazer um importante discurso que nunca realmente se afirmou.