Em 4 de julho [1], uma transmissão ao vivo do presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, provocou um debate on-line sobre o trabalho infantil na internet brasileira. Todas as quintas-feiras à noite Bolsonaro faz transmissões ao vivo pelos seus canais de rede social, desde que assumiu o cargo em janeiro de 2019.
Desta vez o presidente mencionou que, quando tinha cerca de nove ou dez anos de idade, costumava moer milho e colher bananas na fazenda de seu pai, ressaltando o fato de que “isso não lhe fez nenhum mal”. Ele também contou como aprendeu a dirigir tratores e a usar espingardas na infância, e concluiu declarando que a única razão pela qual não apresenta projetos que descriminalizem o trabalho infantil é “porque seria massacrado por isso”.
A lei brasileira [2] determina que qualquer forma de trabalho é proibida para crianças com menos de 13 anos de idade. Aos 14 anos, as crianças são autorizadas a trabalhar como aprendizes, com restrições a turnos noturnos e ocupações perigosas. Somente os adolescentes acima de 16 anos estão habilitados para assinar contratos.
Embora o presidente tenha afirmado que, tão cedo, não planeja propor alterações a essas leis, o trabalho infantil se tornou um tema de discussão nas redes sociais brasileiras na última semana, após suas declarações.
O juiz federal Marcelo Bretas, que trabalha na operação Lava Jato [3] no Rio de Janeiro – e é um declarado partidário de Bolsonaro – contou sua própria experiência de trabalho quando criança, em resposta a uma discussão iniciada pelo filho do presidente, o deputado federal Eduardo Bolsonaro:
Aos 12 anos de idade, em 1982, com minha CTPS assinada, comecei a trabalhar numa pequena loja da família.
Tinha jornada e tarefas a cumprir, e aprendi desde cedo o valor de receber um salário (mínimo) após 1 mês de trabalho.
Tenho muito orgulho disso!— Marcelo Bretas (@mcbretas) July 7, 2019 [4]
Bia Kicis, ex-promotora federal e atual deputada federal do partido político do presidente, também compartilhou suas memórias:
Aos 12 anos de idade eu fazia brigadeiros para vender na minha escola. E o mais interessante era que eu não precisava mas eu sentia uma enorme satisfação de pagar as minhas aulas de tênis com o esse dinheiro. Eu me sentia criativa e produtiva.
— Bia Kicis (@Biakicis) July 8, 2019 [5]
Essas experiências estão claramente bem longe do que a Organização Internacional do Trabalho (OIT) [6] define como “trabalho infantil”. Segundo a OIT, trabalho infantil é a atividade que “priva a criança de sua infância, de seu potencial e de sua dignidade, e que é prejudicial ao desenvolvimento físico e mental”. A organização acrescenta que o trabalho infantil se refere a atividades que “interferem na formação escolar”.
Ajudar a avó a secar louça uma vez na semana não é trabalho infantil. Isso aqui é: pic.twitter.com/vobKcmVuBY [7]
— pugliesigabie (@gabiefernandes) July 9, 2019 [8]
Classe e ignorância
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [9] (IBGE) afirma que atualmente existem 2,5 milhões de crianças e adolescentes, com idades entre 5 e 17 anos, trabalhando no país. O Ministério Público diz que recebe cerca de 43.000 denúncias [9] relacionadas ao trabalho infantil todo ano.
A pobreza é a principal causa do trabalho infantil, afirmou a economista brasileira Monica de Bolle [10] em um tópico popular no Twitter. Ela disse que, embora as crianças trabalhadoras ajudem as famílias de baixa renda a sobreviverem no curto prazo, no longo prazo elas prejudicam a produtividade e o crescimento econômico do país, comprometendo o desenvolvimento social.
Países que mais utilizam trabalho infantil tendem a ser os mais pobres do mundo, o que os prende em armadilha de pobreza e subdesenvolvimento.
De Bolle também sustentou que, embora no curto prazo o trabalho infantil pareça ajudar a diminuir a desigualdade, no longo prazo ele a aprofunda, pois aprisiona crianças e adultos em um ciclo de pobreza. Há também evidências, observou ela, de que a relação entre crianças e trabalhos não remunerados ampliam as disparidades de gênero.
O debate na internet revelou que as diferentes classes sociais no Brasil têm entendimentos distintos do que significa “trabalho”. O Tortura Nunca Mais, grupo de direitos humanos formado após o fim da ditadura militar apoiada pelos Estados Unidos (1964-1985), publicou em sua conta oficial no Twitter:
Os relatos orgulhosos de quem ‘trabalhou’ na infância tem em comum o detalhe de ter sido no negócio da família (a lojinha, a empresa do pai, etc.). O que está mais próximo dos afazeres domésticos do que, propriamente, do trabalho infantil.
— Tortura Nunca Mais (@gtnmsp) July 7, 2019 [11]
Essa foto do fotógrafo João Roberto Ripper mostra um menino trabalhando em carvoaria na Fazenda Financial, em Ribas do Rio Pardo, MS, em 1990.
Se vc acha que a luta contra o trabalho infantil é pra impedir vc de vender brigadeiro pra pagar aula de tênis, vc não entendeu nada. pic.twitter.com/UIi45AaIJL [12]
— Quebrando o Tabu (@QuebrandoOTabu) July 9, 2019 [13]
O equívoco sobre o trabalho infantil – compartilhado por uma parte significativa da sociedade brasileira – decorre da falta de conhecimento sobre seus efeitos adversos, disse Patrícia Sanfelici, promotora que atua na área de legislação trabalhista, em entrevista ao canal de notícias UOL [14]. Sanfelici coordena o grupo de trabalho do Ministério Público que combate o trabalho e a exploração de crianças e adolescentes. Ela comentou:
A alternativa adequada e justa para a criança será sempre a educação e o cuidado que ela merece. A gente não pode pensar de outro modo. A Constituição brasileira assegura proteção integral, absoluta e prioritária da infância. Se a gente entende que a infância deve ser protegida, a gente deve protegê-la como um todo.