No dia 13 de junho, o Supremo Tribunal Federal (STF) do Brasil fez história: igualou homofobia e transfobia ao crime de racismo, previsto na lei brasileira desde 1989.
Na prática, significa que, até que o Congresso Nacional edite uma lei própria sobre o assunto, pessoas que cometerem violência contra LGBTI estão sujeitas a pena de um a cinco anos de reclusão como prevê a lei já existente para discriminação por etnia, cor, raça, religião ou nacionalidade. A maioria dos ministros — oito a três — votaram com a tese do relator, ministro Celso de Mello.
A decisão também torna ilegal limitar acesso a oportunidades educacionais e profissionais com base na orientação sexual, assim como acesso a serviços e prédios públicos. Também deverá ser criminalizada a divulgação de atitudes e eventos homofóbico em redes sociais e outros meios de comunicação.
O Brasil é um dos países que mais mata pessoas LGBTIs no mundo, atrás de México, Estados Unidos e Colômbia. Só em 2018, foram 420 mortes — uma a cada 20 horas, segundo levantamento do Grupo Gay da Bahia. Destas, 72% por homicídios e 24% por suicídios. Até então, não havia leis de combate ao preconceito por orientação sexual ou identidade de gênero no Brasil.
A ação foi apresentada à Corte pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transgêneros e Intersexos (ABGLT) e pelo Partido Popular Socialista (PPS). O julgamento teve sessões desde fevereiro para chegar a conclusão.
Dia 13 de junho de 2019: o Brasil se torna o 43º país no mundo a criminalizar a homofobia e a transfobia.
Conforme a decisão do STF, se torna crime “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito” em razão da orientação sexual da pessoa.#ÉCrimeSim #LoveWins #AEQSE pic.twitter.com/JUHavYGFJE
— #AgoraÉQueSãoElas (@AEQSE_) June 13, 2019
Em defesa do voto a favor da criminalização, a ministra Cármen Lúcia enfatizou que “todo preconceito é violência, toda discriminação é causa de sofrimento”, lembrando que muitas vezes a discriminação começa em casa, separando famílias e amigos. Ela ainda declarou:
Não há como negar a jurisdição a todos a quem foi negado, às vezes, o direito à vida. Na maioria das vezes, o direito à liberdade e à dignidade, pela ausência de uma legislação ainda 30 anos depois do início de vigência dessa Constituição.
O ministro Luiz Fux, outro voto favorável, afirmou que “a violência simbólica é tão alarmante quanto a violência física”, ao explicar que o reconhecimento das condutas homofóbicas e transfóbicas pode ajudar a mudar a cultura do povo. Para ele, “existe uma preocupação mundial dos níveis epidêmicos de violência homofóbica”, mas a legislação e os legisladores ainda se mantém inertes e omissos, daí a necessidade da decisão pelo STF.
Debate jurídico divide opiniões
Os primeiros projetos de lei para tentar criminalizar atitudes discriminatórias com base na sexualidade começaram a ser debatidos no Brasil há cerca de 20 anos. No entanto, a cultura religiosa e conservadora do Brasil dificultou o andamento dos mesmos.
Ao divulgar a notícia da criminalização da homofobia e transfobia, o próprio site do STF ressaltou “a omissão legislativa” em criar leis que defendessem a população LGBTI do país.
Em conversa com o Global Voices, Fernanda Gonçalves, advogada criminalista com atuação no Rio de Janeiro, explica que há juristas que apontam que a decisão viola o chamado princípio da reserva legal, segundo a qual não há infração ou sanção penal sem lei anterior.
No Brasil, temos três poderes independentes – Legislativo, Executivo, e Judiciário. A função característica do Legislativo é criar leis e a do Judiciário é julgar. Enquadrar atos homotransfóbicos na lei de racismo via interpretação, em tese, extrapola a função do Judiciário, por mais nobre que seja a intenção e a causa envolvida.
Para a advogada, há risco quando o Supremo, formado por ministros indicados pelo Presidente da República e não pelo povo, criam uma norma penal.
E se, no futuro, um Presidente da República eventualmente nomeia ministros do STF que decidem que a Lei Anti-terrorismo se estende para atos praticados por ativistas e integrantes de movimentos sociais? Abre-se um precedente perigosíssimo.
Ativistas e pesquisadores também citam o encarceramento em massa da população negra e pobre no país como mais uma questão a ser considerada ao criar mais uma lei de criminalização. O Brasil tem hoje a terceira maior população de presos do mundo, atrás de Estados Unidos e China.
Opinião semelhante tem Iran Giusti, ativista de direitos LGBTI e presidente da Casa 1, espaço na cidade de São Paulo que acolhe pessoas LGBTI que foram expulsas de suas casas. Ao Global Voices, Iran defende que é preciso ter cautela:
Precisamos rever todo o nosso sistema penal e carcerário. Quem é punido no país? Quem é encarcerado no Brasil? Basta olhar os dados para saber que são as pessoas negras.
Conquistas e ameaças transcorrem em paralelo
No Brasil, também por votação do Supremo, o casamento entre pessoas do mesmo sexo foi regulamentado em 2013, e casais homossexuais podem adotar crianças sem impedimentos legais. No entanto, não há políticas eficazes que promovam a igualdade e o enfrentamento a práticas homofóbicas e transfóbicas em âmbito civil. Ainda são constantes as violências físicas e psicológicas sofridas pelos LGBTI.
O cenário político pode tornar ainda mais difícil o avanço das agendas de direitos. O atual presidente, Jair Bolsonaro, que já afirmou ter orgulho de ser homofóbico, possui um longo histórico de comentários preconceituosos. Já disse, inclusive, que preferia ter um filho morto a um filho gay e que o Brasil “não pode ser o país do mundo gay, do turismo gay” porque “temos famílias”.
Acreditamos que o punitivismo não deveria ser o caminho para regulamentação, mas, por enquanto, que vivemos em uma sociedade que só se reorganiza a partir de leis, é uma determinação importante. #lgbt #lgbtqia+ #transgender #vidastransimportam #vidaslbgtsimportam #pride pic.twitter.com/iY3YwjTfoO
— Erica Malunguinho (@malunguinho) June 13, 2019
No início do ano, Jean Wyllys, um dos primeiros deputados brasileiros declaradamente gay, renunciou ao terceiro mandato como deputado federal e deixou o país após anos recebendo ameaças de morte contra ele e sua família. Segundo afirmou em carta, as ameaças foram ignoradas pela polícia federal. Colega de partido e amigo próximo da vereadora Marielle Franco, executada no Rio de Janeiro há pouco mais de um ano, ele passou a temer por sua vida.
No lugar de Jean, assumiu outro homem gay, o agora deputado David Miranda. No final de maio, quando a votação sobre a criminalização foi retomada, David teve uma reunião com o presidente do STF, Dias Toffoli, para explicar a importância da decisão por criminalizar.
Amanhã estaremos acompanhando o retorno dessa importante votação no Supremo Tribunal Federal. Não podemos fechar os olhos para tantos e tantas de nós que são violentadas e morrem diariamente.
#LGBTfobiaMata #ÉCrimeSim #CriminalizaSTF pic.twitter.com/iKYWnRpbtC— David Miranda (@davidmirandario) May 22, 2019
No começo de maio, David protocolou um projeto de lei federal para combater a violência contra pessoas LGBTI. Em uma publicação em sua rede social, ele explica:
Se aprovada, essa Lei poderá garantir uma série de medidas protetivas que poderão salvar milhares de vidas. Será um avanço civilizatório importante em tempos de obscurantismo. Mais um passo em direção à construção de uma sociedade verdadeiramente mais justa e democrática.