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O quão africana é a África do Norte?

Categorias: África Subsaariana, Oriente Médio e Norte da África, Etnia e Raça, Ideias, Mídia Cidadã, Relações Internacionais, The Bridge
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As Seis Regiões da União Africana.  Norte (7 países): Argélia, Egito, Líbia, Marrocos, Mauritânia, República Árabe Saaraui Democrática e Tunísia; Sul (10 países): África do Sul, Angola, Botswana, Lesoto, Malawi, Moçambique, Namíbia, Suazilândia, Zâmbia e Zimbábue; Oeste (15 países): Benim, Burkina Faso, Cabo Verde, Costa do Marfim, Gâmbia, Gana, Guiné, Guiné-Bissau, Libéria, Mali, Nigéria, Senegal, Serra Leoa e Togo; Leste (14 países): Comores, Djibuti, Etiópia, Eritreia, Quênia, Madagascar, Maurício, Uganda, Ruanda, República das Seicheles, Somália, Sudão do Sul, Sudão e Tanzânia; Centro (9 países): Burundi, Camarões, Congo, Gabão, Guiné Equatorial, República Centro-africana, República Democrática do Congo, São Tomé e Príncipe e República do Chade. Diáspora (~170 milhões de pessoas). “A diáspora africana é composta por povos de origem africana vivendo fora do continente, independentemente de suas nacionalidades e cidadanias, e que se dispõem a contribuir para o desenvolvimento do continente e para a União Africana”. Definição de União Africana.
Via West Africa brief
© 2017. Secretariado do Clube do Sahel e da África do Oeste (CSAO/OCDE).

Quando o egípcio Mohammed Salah [2] ganhou o troféu de melhor jogador de futebol africano de 2017, houve um alvoroço na internet. Por quê? Alguns africanos não achavam que Salah fosse suficientemente “africano” [3] para merecer o título.

Com certeza não foi a primeira, nem será provavelmente a última vez que a “africanidade” da África do Norte foi questionada. Em julho de 2015, o jornal The Guardian [4]informou que o nigeriano Chigozie Obioma foi “o único escritor africano pré-selecionado” para o prêmio Man Booker de literatura daquele ano, desconsiderando a presença da escritora marroquina Leila Lalami entre os 13 nomes da lista. 

O que levanta a seguinte questão: por que às vezes os africanos do norte do Saara não são considerados como totalmente “africanos”?

Norte e sul do deserto

A expressão “África subsaariana” [5] em geral refere-se aos 46 países situados ao sul do deserto do Saara. Os países situados ao norte do Saara, bem como o Sudão, são incluídos na unidade geográfica e geopolítica conhecida pelo nome de “região do Oriente-Médio e da África do Norte” (MENA, da sigla em inglês), porque suas características linguísticas, religiosas e culturais têm mais pontos em comum com o Oriente-Médio do que com seus vizinhos ao sul do deserto.

Essa divisão suscitou calorosos [6] debates [7] entre os intelectuais africanos. Alguns acusam o colonialismo [7] de ter semeado a divisão, enquanto outros dizem que a divisão já existia muito antes.

A visão da União Africana

Em teoria, a organização que une o continente é a União Africana (UA) que engloba os 55 estados soberanos  [8]do continente africano, divididos em cinco regiões geográficas [9]: Norte, Sul, Leste, Oeste e Centro. A África do Norte é composta por sete países: Argélia, Egito, Líbia, Mauritânia, Marrocos, República Árabe Saaraui Democrática e Tunísia.

A origem da UA remonta ao pan-africanismo [10], um movimento intelectual que buscava reforçar a integração africana em face da intrusão colonial [11]. Os principais atores na formação [12] da Organização da Unidade Africana, que se transformou mais tarde na UA, foram cinco chefes de estado, três da África Subsaariana e dois da África do Norte: Kwame Nkrumah, que mais tarde tornou-se o primeiro presidente de Gana, Sekou Touré da Guiné, Léopold Sédar Senghor do Senegal, Gamal Abdel Nasser do Egito e Ahmed Ben Bella da Argélia.

Os dirigentes norte-africanos portanto, tiveram um papel igualmente importante na formação da União Africana, a instituição geopolítica mais importante do continente.

África do Norte “branca” e África subsaariana “negra”

Entretanto, muitos norte-africanos  [13]identificam-se mais como árabes ou árabes-muçulmanos do que como africanos, e é verdade que os “países ao sul do Saara foram por muito tempo considerados autenticamente “africanos” [ênfase  aumentado], enquanto que aqueles, ao norte, foram vistos como do Mediterrâneo, do Oriente-Médio ou islâmicos”, argumenta a jornalista egípcia Shahira Amin. Em um artigo intitulado “Os egípcios são africanos ou árabes?”, Amin faz um relato após entrevistar centenas de egípcios, de diversas camadas sociais, sobre o modo como eles veem a si mesmos:

My question raised a few eyebrows among people on the streets, the majority of whom replied ‘I’m a Muslim Arab, of course’ or “an Arab Muslim.’ They shrugged their shoulders and looked perplexed as they responded for wasn’t it an already-known fact that Egyptians are Arabs and that Egypt has a majority Muslim population? A few of the interviewees said that they ‘were descendants of the Pharoahs’ but surprisingly, none in the sample interviewed thought of themselves as Africans.

Minha pergunta fez franzir algumas sobrancelhas entre as pessoas na rua, onde a maioria respondeu “Eu sou árabe-muçulmano, é claro” ou “árabe-muçulmano”. Elas davam de ombros e pareciam perplexas ao responder, por não ser este um fato já conhecido que os egípcios são árabes e que o Egito tem uma população majoritariamente muçulmana? Algumas pessoas perguntadas declararam “descender dos faraós”, mas, surpreendentemente, nenhum dos entrevistados da pesquisa se considerava como africano.

“Não estou surpresa em saber que alguns africanos (em especial na África subsaariana) põem em dúvida a “africanidade”, dos norte-africanos”, declarou Afef Abrougui [14], uma das editoras da Global Voices MENA:

I come from Tunisia, and most Tunisians would identify as Arabs. There is this joke in Tunisia which says that Tunisians only feel African when our national team is playing in the African Cup of Nations. I don’t remember in school that we learnt that Tunisia was not ‘’African’’ but the country’s Arab- Muslim identity is emphasized, particularly in politics.

To give an example, in its preamble the 2014 Tunisian Constitution refers several times to the country’s Arab and Muslim identities, and only once to Africa. Of course, I understand why Tunisians would mostly identify as Arabs because of the language element. Growing up as a child it’s Syrian, Egyptian and Lebanese series and music that were on our televisions. This, however, is unfortunate because identifying as an Arab does not prevent one from also identifying as an African. Africa is diverse and we should celebrate that, instead of putting a label on what an African is.

Eu venho da Tunísia e a maior parte dos tunisianos se identifica como árabe. Tem uma certa piada na Tunísia que diz que os tunisianos só se sentem africanos quando nossa seleção de futebol joga a Copa Africana de Nações. Não me recordo de ter aprendido na escola que a Tunísia não fosse africana, mas a identidade árabe-muçulmana do país era enfatizada, particularmente na política.

Para dar um exemplo, no preâmbulo, a Constituição tunisiana de 2014, refere-se várias vezes às identidades árabe e muçulmana do país, e uma só vez à África. Evidentemente, compreendo que os tunisianos se identificam como árabes, sobretudo por causa do elemento linguístico. Quando criança, eram a música e as séries sírias, egípcias e libanesas que passavam em nossa televisão. Isso, entretanto, é lamentável porque identificar-se como árabe não impede ninguém de se identificar, também, como africano. A África é diversa e deveríamos celebrá-la, em lugar de pôr um rótulo no que é ser africano.

Para os africanos do norte, a definição de “africanidade” pode também estar ligada à influência e ao poder. Após a independência, países como o Egito e a Argélia se voltaram para o Oriente-Médio atrás de um modelo de nação islâmica e para a Europa em busca de parceiros econômicos.

Rawan Gharib [15], colaboradora egípcia da Global Voices, analisou a questão à luz das recentes tensões entre a Etiópia e o Egito, a propósito de um projeto de barragem egípcio [16]:

… [the] Egypt regime's attitude of looking down towards Ethiopia ruined an amazing opportunity to collaborate and revive the African Union concept of the '60s. I think that the sense of detachment from Africanity among Egyptians comes from the lack of believing in a truth that's no longer factual or tangible. We're Africans, yes. The list-song of African countries the Nile River crosses was one of the first history lessons we learned in elementary school, some of us may even still remember it by heart so well, but over the last three decades the only time we were reminded we were Africans, we were referred to as Africans was during the Africa Cup of Nations.

A atitude do regime egípcio em relação à Etiópia arruinou uma incrível oportunidade de colaboração e de resgate do conceito de União Africana dos anos 1960. Eu penso que o sentimento de separação da africanidade entre os egípcios vem da falta de fé em uma verdade que não é mais factual ou tangível. Nós somos africanos, sim! A lista recitada de países africanos que o Nilo atravessa era uma das primeiras lições de história que aprendíamos na escola primária, alguns ainda sabem de cor, mas ao longo das três últimas décadas, a única hora que nos lembram que somos africanos é durante a Copa de Futebol da África de Nações.

Como escreveu a colunista argelina [17] Iman Amrani no The Guardian, a fratura também tem a ver com a perpetuação das hierarquias de valor em termos de cor da pele, de classe e de raça:

[C]ertainly there is something to be said about North Africans trying to distance themselves from ‘black Africa’.

Há certamente algo a se dizer a respeito da tentativa dos norte-africanos em distanciar-se da ‘África negra’.

Preconceitos enraizados na língua, na cultura, na religião

Todavia, o racismo  [18]expresso pelos africanos do norte em relação aos africanos do sul não justifica seu inverso. E a ideia de que “negro” é sinônimo de “africano” está, ela mesma, enraizada no racismo. Durante séculos, o termo África subsaariana agrupou culturas e nações muito mais diversas e complexas em termos de etnicidade [19], linguagem [20], experiências e história, do que sugerem os estereótipos.

Prudence Nyamishana [21]colaboradora da Global Voices em Uganda, precisou confrontar algumas dessas ideias preconcebidas sobre a África do Norte durante uma visita ao Cairo:

I dressed like a clown in a big dress and jeans underneath. I had a scarf ready to cover myself. I was told that women were supposed to be all covered because it is a Muslim country and all this stuff I had read on the Internet. When I boarded the Emirates flight from Dubai to Cairo, there were many Egyptian women dressed in fancy jeans with beautiful uncovered hair. I wanted to go to the bathroom to change my dress because I had got it all wrong… I understood that my prejudices and fears were all hidden in the disconnection between North Africa and the rest of Africa. The history of Arabs and slave trade, the news we get fed is from western media houses. At first being asked whether I was from Africa was irritating. But then I realised that the Egyptians that were asking me if I was African had never traveled outside their own country. Maybe if it was easy to travel within Africa these barriers would be broken down brick by brick.

Eu me vesti como uma palhaça com um grande vestido e uma calça jeans por baixo. Tinha um lenço pronto para me cobrir. Disseram-me que se esperava que as mulheres estivessem todas cobertas porque era um país muçulmano e todas essas coisas que eu tinha lido na internet. Quando embarquei no voo da Emirates de Dubai ao Cairo, havia muitas mulheres egípcias usando jeans extravagantes, de belos cabelos soltos. Quis ir ao banheiro para tirar o vestido porque havia me enganado…Compreendi que meus preconceitos e medos estavam todos escondidos na desconexão entre a África do Norte e o restante da África. A história dos árabes e do comércio de escravos, as notícias de que recebemos vêm das mídias ocidentais. A princípio, eu me irritava quando me perguntavam se eu era africana, mas então me dei conta que os egípcios que me perguntavam se eu era de origem africana nunca tinham saído de seu país. Talvez, se fosse fácil viajar pela África, esses muros caíssem tijolo a tijolo.

Joey Ayoub, redator libanês da Global Voices MENA [22], observa que contrariamente ao pan-arabismo, o pan-africanismo não se converteu em um ideal com apoio institucional:

The divide between ‘black’ Sub-Saharan Africans and ‘Arab’ North Africa seems to me to be the result of Pan-Africanism occupying a different historical route than Pan-Arabism. Pan-Arabism ‘won’ in the sense that its narrative had more significant structural backing (Arab League). I also think it ‘won’ because the Palestinian cause coincided with the period of ‘anti-imperialism’.

O abismo entre os africanos subsaarianos “negros” e a África do Norte “árabe” parece-me resultar do fato que o pan-africanismo percorre um caminho histórico diferente daquele do pan-arabismo. O pan-arabismo “ganhou”, no sentido em que sua narrativa teve um apoio estrutural mais significativo (Liga Árabe). Penso também que ele “ganhou” porque a causa palestina coincidiu com o período do “anti-imperialismo”.

Nwachukwu Egbunike [23], colaborador da Global Voices na Nigéria, se recorda que o pan-africanismo nunca lhe foi ensinado na escola:

Nigeria's fractured past, having fought a civil war, explains why history was kept out of high school curriculum. . . . Nonetheless, I grew up in a Nigeria when almost all our musicians sang about the horrors of Apartheid rule in South Africa. Thus, the deep-seated belief in Africa solidarity was a mark of my childhood…. Nonetheless, I am not oblivious to the equally prevalent dichotomy between black Sub Saharan Africa and Arab Northern Africa. I think the reason behind these labels is obvious, stereotypes need to be reinforced. I have come to realize that ethnic or racial bias are integral aspects of our deeply flawed humanity. People hide behind categories and labels because to do otherwise means a radical transformation; an encounter with that ‘other’ in truth and love.

O passado fraturado da Nigéria, após uma guerra civil, explica o porquê de a história ter sido posta de lado do programa de estudos secundários… Entretanto, cresci em uma Nigéria onde todos nossos artistas cantavam sobre os horrores do regime de apartheid da África do Sul. Então, a crença profunda na solidariedade africana foi uma marca de minha infância. Todavia, não sou indiferente à dicotomia que é igualmente disseminada entre a África subsaariana negra e a África do Norte árabe. Penso que a razão por trás desses rótulos é evidente: os estereótipos precisam ser reforçados. Dei-me conta que os preconceitos étnicos ou raciais são aspectos integrais de nossa humanidade imperfeita. As pessoas se escondem por trás das categorias e dos rótulos porque fazer de outro modo significaria uma transformação radical: um reencontro com esse ‘outro’ em verdade e em amor.

É difícil reconhecer na Argélia de hoje o país sobre o qual Nelson Mandela disse: “Foi a Argélia que fez de mim um homem” [24], declarou Abdoulaye Bah [25], colaborador da Global Voices, italiano de origem guineense, membro aposentado das Nações Unidas, acrescentando:

Algeria played a big role in liberating former colonies in Africa. That is why it is difficult to see today that this government issues racial laws  [26]stigmatizing and limiting the freedoms of blacks on its soil.

In Morocco and Tunisia also the Sub-Saharan suffers. Yet these two countries also played a great role in the creation of the Organization of African Unity. In addition, these two countries are becoming members of the African regional economic groupings, south of Sahara. Gamal Abdel Nasser's Egypt has also been very active in terms of African unity.

On the other hand, the citizens of some sub-Saharan countries did not need an entry visa [for some of these countries] when I was there the last time. In addition, all these countries have trained thousands of sub-Saharan academics. In my opinion, despite all that the Sub-Saharans endure in these countries, it is difficult to question their Africanity.

A Argélia teve um importante papel na libertação das antigas colônias africanas. É por isso que é difícil de ver hoje em dia este governo promulgar leis raciais [26], estigmatizando e limitando a liberdade dos negros em seu território.

No Marrocos e na Tunísia, os subsaarianos sofrem da mesma maneira. Entretanto, esses dois países tiveram igualmente um importante papel na criação da Organização da Unidade Africana. Apesar disso, eles têm se tornado membros de grupos econômicos regionais africanos, ao sul do Saara. O Egito de Gamal Abdel Nasser foi da mesma forma muito atuante em termos da unidade africana.

Por outro lado, da última vez em que estive lá, os cidadãos de determinados países da África subsaariana não precisavam de visto de entrada [para alguns desses países]. Além do mais, todos esses países deram formação universitária a milhares de subsaarianos. Em minha opinião, apesar de tudo isso por que passam os subsaarianos ali, é difícil questionar a africanidade deles.

O analista político Imad Mesdoua [27], um argelino criado na Nigéria, afirma [28] que a dicotomia entre uma África do Norte árabe e uma África subsaariana supostamente negra é falsa. Os africanos, diz Mesdoua, não são definidos pela linguagem, nem pelas fronteiras ou pela geografia, mas sim por uma história comum, pelos valores que os unem e por um mesmo destino.

Talvez, no espírito de sua visão e de seus valores pan-africanos fundamentais, a União Africana devesse se concentrar na desconstrução dessa divisão entre África do Norte e subsaariana e se aprofundar em seu destino comum.