Por Vanessa de Sá
Leona Freitas é uma típica mulher do campo brasileira. Seu cotidiano gira em torno de alguns amigos próximos e do seu parceiro. Seus sonhos não são muito grandes: ela quer comprar uma casa e viver uma vida tranquila. Ela raramente tem se aventurado sair de Congonhas, cidade em que nasceu e trabalha. Nunca visitou uma cidade grande. São Paulo é um sonho distante para ela. Belo Horizonte, a capital do estado de Minas Gerais, fica apenas a 80 km de sua cidade natal e está na sua lista de lugares para visitar. “Irei lá quando eu puder”, diz ela.
Congonhas é uma pequena cidade histórica, conhecida por seus festivais religiosos que atraem milhares de católicos de todos os cantos do país. Com suas várias igreja e escolas católicas, é similar a centenas, talvez milhares de cidades da América do Sul: religiosa e conservadora.
Leona é uma mulher transgênero. Ela tornou sua identidade de gênero pública, após se graduar em pedagogia. Para se qualificar como professora da rede estadual, a aprovação em concurso público é obrigatória. “Não sei se eu conseguiria trabalhar em escola particular, pois a maioria delas está vinculada a igrejas católicas ou evangélicas”, afirma ela.
Então, Leona ensina numa escola pública. Sua vida lá não é fácil. Ela é a única professora trans nessa cidade de 50.000 habitantes, e pode perceber o desconforto vivido por seus colegas de trabalho. Porém ela não é intimidada por eles, pelo contrário. Ela acredita que já conquistou algo maior: ser indicada para a categoria feminina do título honorífico. “Eles ainda têm dificuldade de me chamar de Leona. Eles me chamam pelo meu nome de registro em vez do meu nome social: senhora Albert”, explica.
Em vários países da América do Sul, a discriminação ainda impede que as pessoas que não se identificam com o gênero ao qual foram atribuídas ao nascer – aquele indicado na certidão de nascimento – sejam adequadamente representadas na política, em posições de liderança ou em trabalhos comuns como motorista, vendedor ou caixa.
Em escolas, essa representação é ainda menor. Para a média dos sul-americanos, a função de professor ainda é considerada uma posição de autoridade. “Ninguém espera que uma pessoa transgênero seja professor. Parece que há uma incompatibilidade entre esses dois imaginários”, afirma Alanis Bello, uma professora trans da Universidade Pedagógica Nacional em Bogotá, na Colômbia.
Ana Paula Braga Luz, uma professora voluntária do projeto TransPassando em Fortaleza, concorda que ser transgênero é excepcionalmente complicado. “A maioria das pessoas pensa que os educadores transgênero e transexuais vão sexualizar as crianças e torná-las gays, lésbicas ou transgênero”, ela declara.
Há uma pequena estatística oficial de quantas pessoas trans trabalham no setor de educação pública, não apenas na América do Sul, mas em todo o mundo. Essa população é geralmente pouco estudada, ou não reportada de forma alguma, e as pesquisas demográficas raramente consideram a identidade de gênero.
No entanto, as pessoas transgênero estão ganhando visibilidade graças à mídia e à internet. O Instituto Brasileiro Trans de Educação (IBTE) tem utilizado as redes sociais para conectar professores trans no país. Liderado pelas educadoras trans Sayonara Nogueira e Andréia Cantelli, o IBTE realizou uma pesquisa on-line em 2017 para descobrir quantos profissionais trans estão trabalhando em escolas. “Encontramos 90 professores, mas acredito que há muito mais”, afirma Sayonara. “Ficamos impressionadas com a história de quatro homens trans que se identificaram como lésbicas, pois estavam com medo de não serem aceitos pelos funcionários e alunos da escola.”
Isolados por muito tempo, professores trans estão encontrando força no grupo em crescimento. “Estamos fortalecendo nossa rede de contatos. Buscamos educadores para empoderá-los e informá-los de que há legislação que os protegem, portanto eles não precisam mais esconder suas identidades”, diz Sayonara, que é vice-presidente da organização. “Também os ajudamos a abordar temas como identidade de gênero e orientação sexual na sala de aula com o fornecimento de planos de aula.”
Quebrando o preconceito
No início de cada ano letivo, quando recebe novos alunos, a professora brasileira Fernanda Ribeiro faz uma declaração: “sou travesti”.
“Essa é a maneira como acabo com o boato e me torno acessível para dialogar”, ela confessa. Os alunos findam recebendo formação extra-curricular sobre identidade de gênero. “Geralmente brinco que sou um sujeito de pesquisa ambulante, pois isso resulta na desconstrução de estigma e estereótipos em todos os sentidos.” Atualmente, Fernanda não é mais a “professora trans”. Ela é apenas a professora Fernanda, “um pouco rigorosa, mas muito legal”.
Gradativamente, educadores trans estão reduzindo o preconceito. Blasia Gómez Reinoso se aposentou em 2017 após 35 anos como professora e diretora em uma escola em Catamarca, uma pequena cidade na Argentina. Ela fez sua transição em 2012 e seus olhos lacrimejam quando lembra do momento em que comunicou seus alunos.
“Eles acompanharam o passo a passo da minha transição. Expliquei tudo para eles. A primeira vez que me declarei transgênero, senti-me a pessoa mais amada do mundo. Os meninos me aplaudiram e as meninas choraram”, ela diz, recordando aquele tempo. “Descobri que as crianças são cabeça aberta. Somos nós, os adultos, que temos, normalmente, dificuldades em aceitar a diversidade sexual.”
A colombiana Alanis Bello afirma que teve que lutar para conseguir trabalho na Universidade Pedagógica Nacional. “Meu nome de batismo é Jason”, diz ela. “Não quis mudar meus documentos.” Seus alunos esperavam encontrar um homem como professor. “Adoro estimular a curiosidade dos alunos”, afirma Alanis, que é socióloga. “Vim para a universidade usando salto alto, totalmente maquiada, super drag. Eles ficam de queixo caído de surpresa”, ela ri. Aos poucos, ela construiu uma rede alianças com alunos, professores e outros setores da instituição. Alanis explica que ensinar sob uma perspectiva de travesti é terapêutico. “É uma pedagogia curativa e poética porque tenta remediar as lesões de ódio, raiva e discriminação que todos os envolvidos no sistema educacional vivenciam, não apenas as pessoas transgênero.”
Ela declara que isso tem levado a mudanças. “Estou ajudando a formar futuros educadores que pensam na educação de forma diferente, que se questionam e se deixam envolver pela magia da arte transformista.”
Laura Morales, uma das alunas de Alanis, reconhece que a experiência de ter uma professora transgênero — ou “profe”, como dizem os colombianos — foi chocante e transgressora para a sua maneira de pensar e sentir. “Foi maravilhoso”, ela diz. “Quando você chega num lugar como a universidade e conhece uma pessoa com a qual você se conecta não por causa do gênero dela, mas por causa da sua humanidade e cuja a aparência faz você dizer para si mesma, bem, ela é fisicamente diferente, mas é seu sorriso, seu jeito, sua mente que é mais cativante. Você começa a percebê-la não mais em termos de gênero, mas como ser humano. Tem sido crucial, pois aprendi que não há apenas duas opções, mas mil formas de aceitar, pensar e sentir”.
Esta matéria foi financiada pelo The European Journalism Centre.