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Conheça histórias de defensores dos Direitos Humanos nas periferias de São Paulo

Categorias: Arte e Cultura, Direitos Humanos, Ideias, Mídia Cidadã, Mulheres e Gênero

DJ Leo Sheik atua pelo direito à moradia | Foto: Andressa Oliveira/Divulgação/Usada com permissão

Essa reportagem, escrita porJoão Paulo Brito, foi publicada originalmente no site da Agência Mural  [1]e republicada aqui em uma parceria de compartilhamento de conteúdo. 

João Paulo Alencar, o “Todyone”, 35, é artista plástico e faz mutirões de grafite em Guaianases, bairro de São Paulo. Perto dali, em Lajeado, Keli de Oliveira Rodrigues, 38, coordena um centro que atende mulheres vítimas de violência doméstica. O líder comunitário Rodrigo Olegário, 41, ficou conhecido por reivindicar melhores condições no seu bairro, a Vila Icaraí, na Brasilândia. Enquanto Leandro Mendes dos Santos, o DJ Leo Sheik, 26, ganhou o respeito dos moradores do Morro da Kibon, em Santo André, cidade da região metropolitana, pela dedicação em conseguir moradias a quem nunca teve casa.

Estas pessoas têm em comum o fato de viverem nas periferias da Grande São Paulo e cada uma, a sua maneira, dedica a vida em prol de uma causa e da defesa de direitos – que já existem e que deveriam estar garantidos.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos contém 30 artigos que vão desde direitos à cultura e ao lazer, à saúde e bem-estar, à moradia e à vida, até não haver violência e tortura.

E, há duas décadas, no dia 9 de dezembro de 1998, a Assembleia Geral das Nações Unidas, adotava em reunião plenária a Declaração sobre o Direito e a Responsabilidade dos Indivíduos, Grupos ou Órgãos da Sociedade de Promover e Proteger os Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais Universalmente Reconhecidos.

O racismo é um tema que aparece nos grafites de Todyone (Divulgação/Usado com permissão)

Ativista x defensor(a)

Mas o que define um(a) ativista ou um(a) defensor(a) de direitos humanos? Há estereótipos relacionados a esse conceito, explica Ana Claudia Cortez, 28, graduada em Relações Internacionais, Ciências Sociais e mestre em Direitos Humanos.

O primeiro deles é o fato de o ativismo ser visto como uma forma de afronta ao Estado, uma tentativa de prejudicar o funcionamento do governo. Outra questão particular ao Brasil, segundo a especialista, é que ambos os termos estão ligados aos movimentos de esquerda e à palavra “ideologia”, o que no Brasil tem um forte vínculo com grupos progressistas.

“Um outro estigma que está colocado é que quem defende direitos humanos é defensor de bandido ou que estaria ligado ao crime. Mas o que as pessoas não entendem é que a garantia do direito de uma pessoa depende da garantia do direito de todos”, diz ela.

O pernambucano Todyone se considera ativista, mas não defensor de direitos humanos. O artista plástico desenvolveu o conceito de “grafite comunitário” e, desde 2009, realiza mutirões que atraem anualmente dezenas de grafiteiros para pintar os muros do lugar.

Ao lado do parceiro Nômade, com o projeto Grafite Griot (“Griot” significa contador de história, em iorubá, língua nígero-congolesa), ele resgata, pela pintura, o conceito de educação africana aliado à realidade urbana.

“Não consigo me dar esse nome [de defensor de direitos humanos]. É surreal. Talvez um playboy que nunca viu uma criança ter que vender o leite que ganha na escola para comprar coisas pra casa é mais fácil se considerar assim, mas pra mim esse é um nome pesado”, explica. Ainda assim, ele confessa já ter sido ameaçado por conta do seu trabalho.

Também atuando entre a admiração e a hostilidade, Leo Sheik se tornou uma liderança espontânea para os moradores do Morro do Kibon, na cidade de Santo André, depois de ocupar um terreno ocioso há décadas e transformá-lo em uma ocupação residencial, na qual moram cerca de 180 famílias.

Hoje, ele se divide entre arte, família (esposa e filho) e a coordenação da ocupação. DJ e produtor cultural, ele media discussões na ocupação como conflitos conjugais e brigas por espaços. Leo se recorda da infância pobre em uma outra ocupação quando, aos 5 anos de idade, enfrentou um processo de reintegração de posse e se viu sem-teto.

“Todos nós temos direitos. Moradia é um direito nosso, assim como o direito da cultura e do lazer”, explica. Mas, sua dificuldade está em conceber o termo ativista: “Eu acho que não sei o significado total dessa palavra. Você pode me explicar?”.

Na Brasilândia, que historicamente figura na lista de distritos com alguns dos piores indicadores no Mapa da Desigualdade, realizado pela Rede Nossa São Paulo, Olegário começou a militar justamente devido a sua inquietação diante das estatísticas.

Na luta para mudar a cara do seu bairro, em 2011, criou o “Programa Bairro Limpo: Quem ama cuida”, que combate o descarte de lixos irregulares na comunidade.

As boas intenções de Olegário, no entanto, não foram suficientes para impedir que sofresse injúrias e humilhações. Os episódios só o incentivaram a “buscar bagagem” em cursos na Câmara Municipal, em coletivos contra o extermínio da juventude negra, pobre e da periferia, e no Núcleo de Estudos Criminais da PUC. Hoje, ele dá palestras a jovens e adultos e trabalha com a conscientização de temas como a promoção da cidadania, ao combate ao encarceramento em massa e ao racismo.

Para Keli, o trabalho que desenvolve na Casa Viviane, um centro que atua na prevenção e no combate à violência doméstica no bairro do Lajeado, não pode ser visto como ativismo, já que ela é remunerada para ser coordenadora da instituição.

“Há uma linha tênue entre ser ativista ou não. O que faço é um trabalho comprometido com atividades ativistas”, explica. Porém, devido a sua longa trajetória de militância, com passagens pela Pastoral da Juventude, entidade vinculada à igreja católica, e ao Instituto Paulista de Juventude, a socióloga feminista se considera “totalmente” defensora dos direitos humanos.

Por defender mulheres vítimas de violência, Keli sofreu ameaça anônima por telefone. Isso, porém, não a impediu de continuar desenvolvendo atividades no centro, como o Chá Lilás, onde mulheres do bairro encontram um espaço seguro para desabafar as dores de uma vida marcada pelo machismo e pela misoginia.

“Temos que ter noção que a gente vive num país que é muito arisco e avesso à defesa dos direitos humanos. Não à toa, muitos e muitos militantes têm tombado por aí e acho que a gente vai viver ainda momentos mais penosos”, avalia.

Segundo Ana Claudia Cortez, é comum a confusão entre os termos “ativista” e “defensor(a) de direitos humanos”. Enquanto ativista é aquele ou aquela que age em prol de uma determinada causa, um(a) defensor(a) de direitos humanos é quem se dedica a ser ativista em prol de uma causa específica, na defesa de um ou mais direitos humanos.

“Nem todo ativista é um defensor de direitos humanos. Existem ativistas que focam sua atuação em questões que são contra o avanço dos direitos humanos. E suas ações implicam em retrocessos de direitos garantidos”, explica.

O Brasil desponta como o país mais perigoso para defensoras e defensores de Direitos Humanos e Ambientais do mundo, segundo a Global Witness (Relatório da Global Witness)

Quem defende os defensores

Mais comum que a confusão entre os conceitos de direitos humanos tem sido sua criminalização. Além de assédio nas redes sociais, também viram perseguições, ameaças e execuções.

De acordo com a organização internacional Global Witness, o Brasil ocupa a primeira posição no ranking de países que mais matam defensores [2] de direitos humanos, sociais e ambientais no mundo. Os dados mais recentes, de 2017, apontam 57 mortes, superando Filipinas (48) e Colômbia (24).

Personagens históricos, como Chico Mendes, Dorothy Stang [3], Nilce de Souza [4], a Nicinha, e mais recentemente, Marielle Franco [5] e Moa do Katendê [6] são exemplos disso.

No contexto da Copa do Mundo e das Olimpíadas, realizadas no país, a então presidente Dilma Rousseff sancionou [7] uma lei supostamente “antiterrorista”. Para muitas organizações da sociedade civil, o texto representa um grave retrocesso e uma ameaça aos movimentos sociais, uma vez que pode criminalizar a ação desses grupos.

Agora, além do Congresso debater outra lei que pode afetar os movimentos sociais, ainda durante as eleições, o presidente eleito Jair Bolsonaro declarou que botaria “um ponto final em todos os ativismos do Brasil”. Há outras falas, porém, que tentam contrapor o futuro presidente. Durante a diplomação de Bolsonaro (cerimônia que reconhece que ele pode assumir a presidência do país), a ministra do Supremo Tribunal Federal, Rosa Weber, disse:

“A democracia é também exercício constante de diálogo e de tolerância, sem que a vontade da maioria, cuja legitimidade não se contesta, busque suprimir ou abafar a opinião dos grupos minoritários, muito menos tolher ou comprometer os direitos constitucionalmente assegurados”.