Como os quadrinhos de Marcelo D'Salete ajudam a entender o Brasil do passado e do presente

Marcelo D'Salete por Rafael Roncato/ Divulgação.

Marcelo D'Salete trabalhando | Foto: Rafael Roncato/Divulgação/Usada com permissão

O Global Voices publicou, em 2013, matérias especiais sobre as histórias em quadrinhos do artista Marcelo D'Salete. Ele já vinha ganhando reconhecimento por suas narrativas urbanas e seu olhar caracterizado por “problematizar e tornar mais complexas as possibilidades de representação de negros e de sua história”, como afirmou na época.

Com o tempo, D'Salete voltou-se para o passado. Suas obras mais recentes, Cumbe (2014) e Angola Janga (2017), abordam a resistência de negros escravizados no Brasil. Baseados em pesquisa histórica, os trabalhos nos transportam para uma jornada de onde saímos estimulados pelos retratos de resistência, colaboração, coragem. Essa jornada tem rendido prêmios ao artista no Brasil e no exterior.

A entrevista a seguir foi concedida ao GV, por áudio gravado pelo próprio quadrinista e professor:

Marcelo D'Salete por Rafael Roncato/ Divulgação.

Global Voices (GV): Um  Eisner por Cumbe/Run For It, um  Jabuti  por Angola Janga,  obras listadas  no Plano Nacional do Livro Didático Literário, talvez um  game baseado em Angola Janga. Profissionalmente, o que foi 2018 para você?

Marcelo D'Salete (MDS): Com certeza foi um ano – embora, socialmente falando, muito difícil – em termos da projeção, da circulação do meu trabalho, foi de muitas transformações, de uma grande reviravolta que já tinha começado com Cumbe. Mas acabou calhando que boa parte das premiações pra quadrinhos aconteceram nesse ano, seja nessas quatro premiações – Eisner, Jabuti, HQ Mix e Grampo – ou também em outras indicações que prestigiaram minhas obras. Então, foi um ano, eu diria que no mínimo, muito especial.

GV: Tua obra tem essa característica de voltar os olhos para personagens que, normalmente, não estão no primeiro plano. Ao fazer isso, revela motivações, toda uma visão de mundo. Por que a perspectiva negra é importante nas histórias que você quer contar?

MDS: Imagino que tenhamos algumas narrativas, talvez um pouco mais no campo da literatura, com personagens negros. Mas poucas vezes esses personagens são protagonistas nessas histórias. Creio também que são poucas as histórias que acabam alcançando um grande público. Esse tipo de narrativa é importante para compreender o nosso passado, mas também para compreender o nosso presente. Não é simplesmente uma questão de colocar essas figuras lá. É colocar essas figuras, nessas narrativas, de um certo modo, com certa complexidade, tentando compreendê-las, tentando vê-las com seus defeitos mas também com suas conquistas.

GV: Em julho de 2018, quando fez uma  postagem sobre o Eisner de Cumbe , você disse: “o incentivo público à formação e produção do profissional é parte essencial do processo de criação de quadrinhos e do surgimento de novos autores e narrativas”. Por que você fez questão de destacar o papel do incentivo público?

MDS: Os livros Cumbe e Angola Janga tiveram o apoio do PROAC (de incentivo à cultura no estado de São Paulo), que é um programa que premia os melhores projetos com um valor em dinheiro para o artista e para a impressão do livro. Isso ajudou muito para que eu tivesse um pouco mais de tranquilidade para finalizar esses trabalhos. É claro que eram trabalhos que já estavam acontecendo há mais tempo, e eles viriam a público imagino que mais cedo ou mais tarde. Mas, o prêmio acabou colaborando para que os trabalhos saíssem naquele tempo e com qualidade.

Isso é algo importante para incentivar, para que continue, para que se amplie em diferentes estados e a nível federal, para que artistas de diferentes locais possam produzir o seu trabalho e vê-lo impresso, vê-lo circulando.

GV: Você também exaltou o papel dos quadrinhos para promover mudanças, dizendo que “as artes são componentes essenciais para uma mudança estrutural”. Por quê? 

MDS: Os quadrinhos foram um elemento muito importante na minha alfabetização, no meu aprendizado. Eu lia quadrinhos desde muito cedo. Tenho uma paixão por esse tipo de veículo até hoje. Foi a partir deles que eu tive contato com algumas narrativas diferentes sobre a nossa sociedade e o nosso passado. O quadrinho de ficção e outros, assim como cinema, foram importantes para minhas relações, pros meus colegas, pra minha geração, principalmente nas décadas de 1980 e 1990, nesse momento de formação.

Acredito que o tipo de arte que a gente pode fazer, em formato de quadrinhos, tem um grande potencial. É essencial trazer novas perspectivas e novas possibilidades de ver nossa sociedade hoje e no passado. Algo que possa favorecer uma mudança de mentalidade em relação ao tratamento dos diversos grupos que a gente tem no Brasil, contrapondo uma visão hegemônica, que ainda enquadra esses grupos em posições diferentes e desiguais. Essa visão hierarquizada da sociedade, nos últimos meses, a gente vê que está bem marcada na fala de diversos políticos.

Página de Angola Janga, de Marcelo D'Salete. Reproduzida com autorização do autor.

Página de Angola Janga, de Marcelo D'Salete. Reproduzida com autorização do autor.

GV: Quais os marcos da sua carreira que você destacaria?

MDS: Além das obras de literatura infantil, ilustrando textos de outras pessoas, tenho quatro trabalhos solo de quadrinhos publicados até agora – Noite Luz (2008); Encruzilhada (2011), Cumbe (2014) e Angola Janga (2017). Os dois últimos são os mais conhecidos pelo público, mas considero que os primeiros, que são trabalhos mais urbanos, também trazem algo importante pra gente pensar.

GV: Nesse período, como foi ver o seu público crescer?

MDS: Foi muito interessante observar a formação de um público para o tipo de quadrinho que eu estava fazendo. Foi um processo lento, mas foi muito interessante observar que, a cada edição, mais pessoas ficavam conhecendo esses trabalhos. Geralmente, essas pessoas não vão atrás apenas de um livro, elas acompanham a obra completa de um autor. Acho isso interessante, é algo que eu gosto de fazer também – quando eu gosto de um artista, gosto de acompanhar todo o seu trabalho.

GV: Que lembranças você tem dos quadrinhos no seu período como aluno?

MDS: Na escola pública, onde eu estudava, eu não lembro de ter contato com quadrinhos. Os quadrinhos acabaram entrando na escola pública, e mesmo particular, um pouco depois, em meados dos anos 2000. Eu só fui ter contato com quadrinhos por meio de colegas que tinham o mesmo gosto. Infelizmente, não era uma leitura realizada em sala de aula.

GV: O fato de ter obras listadas no Plano Nacional do Livro Didático (PNLD) abre novas possibilidades para um artista. Como vê a possibilidade de sua obra ser referência para uma geração de estudantes?

MDS: É um meio muito interessante e tem um potencial enorme para atingir diversas gerações de leitores. Lembrando que não é apenas uma narrativa mais fácil que a literatura em prosa, mas, sim, uma outra forma de contar histórias.

Acho muito importante que os livros estejam no PNLD. Não era a minha intenção inicial, mas, depois, vendo o trabalho pronto e observando a relação do público com essas obras, mostrando para os jovens e vendo a reação dos meus próprios alunos com essa literatura, eu fui me acostumando mais com a ideia de que, sim, é um material que pode ser utilizado em sala de aula. Professores têm comentado que as obras são um excelente recurso para discutir esses temas.

GV: A sua premiação com o Eisner e o Jabuti geraram uma bela comoção nas redes sociais. O que esses prêmios significam para você?

MDS: Prêmios como o Eisner, o Jabuti, o Grampo, assim como o HQ Mix,  acabam fortalecendo este tipo de narrativa e de tema. Isso fortalece os artistas novos que estão tentando elaborar algo também nessa linha, mas que às vezes ficam desmotivados por achar que isso é um tema, talvez, não apreciado por muitas pessoas. Premiações como essas mostram que há interesse e que esse é um tipo de obra que pode atrair público também fora do Brasil.

Essa perspectiva sobre a nossa história e a nossa sociedade, nós temos todas as condições de explorar e revelar de um modo instigante e complexo.

Página de Angola Janga, de Marcelo D'Salete. Reproduzida com autorização do autor.

Página de Angola Janga, de Marcelo D'Salete. Reproduzida com autorização do autor.

GV: Depois de tantas entrevistas, noites de autógrafos e debates, é possível apontar uma pergunta que ainda não te fizeram e que você gostaria de ter respondido?

MDS: Gostaria de reforçar que este trabalho, do Angola Janga, é um trabalho que fala sobre um período e um contexto. Eu gosto muito de vê-lo como uma obra com diversos personagens, diversas narrativas, tentando analisar aquele contexto do modo mais complexo possível. Foi uma experiência muito rica, um aprendizado enorme nesses anos todos.

A ideia era tentar fazer com que a gente se aproximasse um pouco mais desses diferentes personagens naquela narrativa, para além de alguns líderes que são importantes, como Zumbi [um dos líderes do Quilombo dos Palmares], mas revelando também outros personagens igualmente relevantes para tentarmos compreender aquele período.

 


Para conhecer mais das obras: http://www.dsalete.art.br/

 

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