DJ Dolores, artista brasileiro do Manguebeat: ‘Talvez a alegria incomode o conservadorismo’

DJ Dolores por Marcelo Lyra | djdoloresmusic.com

O músico DJ Dolores | Foto: Marcelo Lyra/Divulgação

Uma das atrações do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro de 2018 foi a aula aberta apresentada por DJ Dolores — Hélder Aragão – músico, compositor, designer, uma figura histórica do cenário cultural brasileiro como integrante do movimento Manguebeat (ou Manguebit) no Recife – um gênero musical e um coletivo inovador por sua mistura única de sons temperados com música e ritmos tradicionais da cultura de Pernambuco, no nordeste do Brasil, como o maracatu.

Integrante do movimento, DJ Dolores atuou como designer de capas de discos e dirigiu videoclipes de artistas como Chico Science & Nação Zumbi, Mundo Livre S/A e Eddie.

A aula aberta de Dolores era sobre a trilha sonora de “Lama dos Dias“, série da qual é codiretor. A atração é uma ficção que retrata a trajetória da banda Psicopasso, um conjunto cuja sonoridade mescla a agressividade do rock com a batida do maracatu, e um grupo de amigos de uma universidade insatisfeitos com o sistema e frequentadores da cena musical local da capital pernambucana, Recife. Ao contar essa história, a série também retrata a ebulição cultural que tomou conta da cidade no final do século XX.

Na entrevista a seguir, Dolores fala sobre o Lama (como gosta de referenciar a série), a música no Brasil dos anos 1990 e emoções que o meio digital já não proporciona. Uma curiosidade: Dolores participou da coletânea da revista Wired “Rip. Sample. Mash. Share.

Global Voices: Uma das coisas que me chamaram atenção no primeiro episódio da série foi a cena em que a novidade musical chega por meio de uma fita cassete (K7). Como era o acesso aos sons que faziam a sua cabeça nos anos 1990?

DJ Dolores: Só tinha disco e cassete naqueles tempos. Se alguém gostava da mesma música que você gostava, automaticamente surgia uma amizade. A música era rara e o comportamento de compartilhá-la era uma das coisas boas que lembro. A gente copiava fitas, percorria grandes distâncias atrás da discos, de um VHS com shows ou videoclipes, etc. Acho que aquelas pessoas sentiam-se parte de uma espécie de confraria secreta em torno das canções.

GV: Você comentou que viajava só para arranjar discos novos. Como vê o compartilhamento de música hoje?

DD: É fácil, todo mundo tem acesso e o consumo é bem mais superficial. Eu lembro de entrar em estado febril quando achava um disco que queria muito. Hoje, você tem tudo à altura da ponta dos dedos. É ótimo mas não gera esse envolvimento emocional tão forte.

Cena de Lama dos Dias | Foto: Canal Brasil/Divulgação.

GV:. Você remixou uma música do Gilberto Gil para a clássica edição da revista Wired sobre as licenças Creative Commons (2004). Como eram os debates sobre licenças naquele tempo?

DD: Havia uma resistência muito grande entre os mais velhos. A compreensão deles é que seriam atingidos no bolso. Na verdade, o CC é apenas uma forma de licença que faz quem quer. No Lama, por exemplo, usei uma música que estava sob CC. Como fizemos uso comercial, pagamos por isso. É uma forma alternativa de comercializar/distribuir/promover seu trabalho. Só isso.

GV: Voltando a Lama dos Dias, poderia comentar um pouco sobre a trilha e também sobre suas escolhas para o desenho sonoro da série?

DD: Há várias camadas de trilhas: a primeira é a música da Psicopasso, que deveria soar tola no começo e ir gradualmente se sofisticando. A segunda é a trilha que toca nas rádios, nos discos, festas, etc… essa parte é uma espécie de paródia do que ouvíamos, é uma camada cheia de referências e foi muito divertido de fazer. Por fim, a terceira camada é a música feita para acentuar ambientes, climas, ações… É a parte que mais gosto e a que mais passa desapercebida pelo espectador.

GV: Durante a aula aberta, você mencionou a personagem da Negrita MC – rapper, negra e frontwoman de uma banda punk. Essa personagem existiu ou ela é uma mistura das memórias dos autores?

DD: Os personagens são frutos da mistura de várias pessoas que, de fato, existiram. Negrita é um ponto inventado: seria impossível ter uma mulher preta e periférica liderando uma banda de rap nos anos 90. Era um tempo muito mais machista que hoje…

Boyzinha, personagem de Negrita MC (centro). Foto: Canal Brasil | Divulgação.

Boyzinha, personagem de Negrita MC (centro) | Foto: Canal Brasil/Divulgação.

GV: O pano de fundo da vida dessas meninas e meninos envolvia o começo do Manguebeat e também uma espécie de desencontro com o Brasil em crise. Como entende o papel das artes, especialmente da música, naquele momento?

DD: Rapaz, éramos todos jovens, então não tinha tempo ruim. O país poderia afundar que a gente continuaria focado no que estava fazendo. Talvez seja exatamente a alegria que incomode tanto o conservadorismo. Nesse sentido, a música é um troço realmente revolucionário por criar mundos alternativos ao senso comum.

GV: E hoje? Qual é a novidade que vem do Recife? O que tem te chamado a atenção por lá?

DD: O Recife está em processo de se redescobrir. É um momento em que há bons destaques mas não uma coisa coletiva e poderosa.

GV: Pra encerrar – você está divulgando Lama dos Dias há algum tempo. Nesse processo, qual a pergunta que nunca te fizeram, mas que você gostaria de ter respondido?

DD: Nunca me perguntaram quem sou eu na série. Nem adiantaria porque eu não responderia. (Risos).

Sobre a série

O Global Voices entrou em contato com o Canal Brasil, que confirmou que, inicialmente, a série só estará disponível ao público brasileiro. Além de DJ Dolores, a série “Lama dos Dias” tem co-criação de Hilton Lacerda, um dos representantes de “uma fértil safra de cineastas pernambucanos” do fim dos anos 1980, que assinou os filmes Baile Perfumado (1997) e Amarelo Manga (2002).

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