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Sem ter vergonha: como uma iniciativa digital está ajudando a proteger a saúde sexual dos jovens no Cazaquistão

Categorias: Ásia Central e Cáucaso, Cazaquistão, Arte e Cultura, Direitos Humanos, Ideias, Juventude, Língua, Mídia Cidadã, Mulheres e Gênero, Política, Saúde, The Bridge

Todas as imagens usadas sob a permissão de Darya Sazanovich [1]UyatEmes.kz [2].

Ao entrar na sala cheia de garotos da 11ª série, o agai, sem dúvida, se perguntava como iria desempenhar a difícil tarefa que lhe fora solicitada pela diretora da escola.

Esse agai, como é chamado nas escolas do Cazaquistão um professor do sexo masculino na língua cazaque, era um professor de educação física. Ele estava substituindo a diretora na aula de valeology, ou “saúde”, matéria que ela geralmente ensinava.

A tarefa era conversar com garotos de 16 e 17 anos sobre como se manterem “seguros” em seus relacionamentos com garotas. Nenhum de seus treinamentos anteriores o havia preparado para isso.

Abai bolyndar!”, começou o agai, que significa “tenham cuidado” em cazaque.

A instrução vaga encontrou um couro de risinhos desconsertados que logo deu lugar a uma discussão sobre o jogo de futebol da noite anterior assistido pela maioria dos alunos. Falar sobre futebol era mais confortável tanto para os estudantes quanto para o agai e, por isso, ele rapidamente abortou a missão.

Essa foi a primeira e última exposição do meu primo à educação sexual na escola da próspera cidade do nordeste do Cazaquistão na qual ele se formou no ano passado. Sexo é considerado um tópico inadequado para as salas de aula desse antigo país de maioria muçulmana soviética.

No entanto, de acordo com um estudo nacional do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), “64,6% dos jovens entre 15 e 19 anos têm a primeira experiência sexual durante os anos escolares e 13,6% antes dos 15 anos”. Em um país de 18 milhões de habitantes, fontes da mídia [3] reportam com regularidade que anualmente há entre 6.000 e 10.000 partos de meninas adolescentes. Esses números não incluem os nascimentos não registrados pelo Estado, nem levam em conta gestações interrompidas por abortos legais e ilegais.

Mais do que vergonha

Embora o sexo antes do casamento não seja incomum no Cazaquistão, é profundamente estigmatizado. Diante disso, as consequências de uma gravidez indesejada podem ser desastrosas. São frequentes os relatos de jovens mães abandonando recém-nascidos em lixeiras [4] ou banheiros [5] de beira de estrada [6]. Muitos desses bebês nascem sem assistência médica, uma vez que menores de idade só têm acesso a serviços médicos de maneira legal quando acompanhados por um dos pais.

Nossa própria pesquisa [7] descobriu que uyat, uma palavra cazaque que descreve um sentimento profundo de vergonha, está entre as principais razões pelas quais a instrução básica em saúde sexual é tão deficiente em todo o país. É uyat para os pais falar sobre sexo e contracepção com os filhos. Mas a maioria dos pais também não quer que essas conversas aconteçam na escola, pois acham que é muito cedo para os filhos receberem essa informação. Se a educação sexual é abordada dentro dos muros da escola, a responsabilidade é do professor, como o agai de meu primo, que não quer se envolver no assunto.

Cazaque e russo são as duas principais línguas faladas no Cazaquistão, e embora o conservadorismo social seja comum em todo o país, é mais forte nas comunidades de língua cazaque.

Quando se fez a pergunta “quem deve ser responsável pela educação sexual dos jovens?”, a maioria dos participantes entre 15 e 30 anos de idade falantes da língua cazaque entrevistados [8] como parte de nossa pesquisa citou os pais. Por outro lado, a maioria dos entrevistados de língua russa disse que era responsabilidade das escolas. Apenas um entrevistado da língua cazaque e sete entrevistados do grupo de língua russa (de um total de 57) admitiram ter tido uma “conversa sobre sexo” com um dos pais.

Embora os jovens frequentemente concordem sobre a necessidade de aprender mais sobre saúde sexual e reprodutiva, o tabu em torno do tópico os deixa com vergonha de fazer perguntas.

O aparecimento dos uyatmen

Uyat é um conceito amplo [9] que regula informalmente a vida dos cidadãos no Cazaquistão.

Tem sido o centro das atenções por ser usado por homens para humilharem mulheres que não estão de acordo com as ideias sociais convencionais de como elas e meninas cazaques devem se vestir ou se comportar, ou mesmo quem devem escolher para namorar ou casar.

Um famoso cartunista cazaque criou um termo para esses homens: uyatmen [10]. Os uyatmen costumam usar táticas de violência e intimidação para obrigar outros a seguirem seu exemplo. Em março passado, um homem que se autodenominou “polícia moral” agrediu prostitutas cazaques com um chicote [11] nas ruas de Almaty, a maior cidade do Cazaquistão.

Não só as adolescentes que engravidam, mas adolescentes como um todo são humilhadas e estigmatizadas por serem sexualmente ativas. Porém, se 65% dos jovens estão fazendo sexo, mas são abandonados à própria sorte no que concerne à educação sexual, o que isso diz sobre o Cazaquistão como sociedade?

Fechar os olhos para um problema não o elimina. Meta-análises [12] de 89 programas de educação sexual nos Estados Unidos provaram que abordagens restritivas enfatizando a abstinência de todo contato sexual também não ajudam a causa. Além de superlotar os orfanatos estatais, a falta de conhecimento sobre saúde sexual leva a abortos na adolescência, saúde reprodutiva precária, casamentos precoces e poucas oportunidades educacionais e econômicas para pais jovens. Surpreendentemente, o governo e a sociedade civil do Cazaquistão optaram por ignorar o problema.

Por isso lancei uma plataforma on-line para jovens, a UyatEmes.kz [2]. O nome do site significa “sem vergonha” ou “não é vergonha” e publica artigos curtos sobre temas como puberdade, bullying, relacionamentos, sexo, contracepção e outros.

A UyatEmes.kz [2] oferece aos jovens um espaço onde eles podem fazer perguntas anônimas aos nossos consultores sobre questões de saúde sexual e reprodutiva, mesmo aquelas muito pessoais. Eles também podem compartilhar suas experiências e ler histórias escritas por colaboradores adultos relembrando experiências [13] difíceis da adolescência.

A plataforma não é apenas para os jovens, mas também para os pais. Está acessível tanto em cazaque quanto em russo, o que é importante, já que os recursos na língua cazaque sobre saúde sexual são praticamente inexistentes.

A UyatEmes.kz é um trabalho em desenvolvimento. No futuro, pretendo acrescentar um jogo interativo que ensine aos jovens habilidades práticas de tomada de decisões em torno de questões como o assédio sexual e a pressão dos colegas.

A principal mensagem que quero transmitir através do UyatEmes.kz é que a saúde sexual e reprodutiva não é um assunto vergonhoso e que ter conhecimento sobre essas questões é um direito de todas as pessoas.

Não foi surpresa o aparecimento de alguns uyatmen logo após o lançamento da plataforma. Na seção de comentários de uma entrevista minha no YouTube, eles discutiram como uma mulher como eu merece morrer e apresentaram propostas sobre como exatamente isso deveria acontecer. Quando me recuperei do choque inicial, eu me tranquilizei porque me dei conta de que não haveria necessidade de um projeto como o meu se todos concordassem que os jovens cazaques precisavam de uma melhor conscientização sobre a saúde sexual.

Afinal, se o agai de meu primo não tivesse tido medo de falar francamente com seus alunos, esses meninos provavelmente teriam tido coragem de lhe fazer perguntas que não fariam a mais ninguém. Se o Estado e a sociedade tivessem tomado medidas ativas para educarem os jovens sobre práticas sexuais seguras, muitas jovens mulheres não iriam abandonar seus bebês à beira de estradas. Se cada um de nós tiver um compromisso pessoal de se educar sobre saúde sexual e reprodutiva e começar a discutir essas questões em nossas famílias, talvez os adolescentes tenham mais confiança em nós e compartilhem seus problemas.

Uma plataforma on-line não pode resolver todos esses problemas. Mas se o UyatEmes.kz [2] ajudar pelo menos um garoto ou uma garota em direção a um futuro melhor, eu consideraria que fiz a diferença.

Karlygash Kabatova é fundadora e coordenadora da UyatEmes.kz.