Quando a Netflix anunciou que estava lançando o primeiro desenho animado produzido no Brasil, o público nas redes sociais parecia ansioso. O anúncio foi feito no final de maio com o lançamento de um teaser de 38 segundos. Super Drags conta a história de três jovens – Patrick, Donny e Ramon – que trabalham em uma loja de departamentos durante o dia e à noite se transformam em drag queens super-heroínas.
Logo após o anúncio, no entanto, a série virou alvo de notícias falsas nas redes sociais, em páginas de grupos conservadores. Segundo reportagem do jornal O Estado de São Paulo, um dos textos acusa o desenho de “explorar o homossexualismo (sic) nas crianças” e “fazer apologia ao lesbianismo (sic) e outras práticas sexuais”, mesmo sem conhecer o conteúdo dos episódios. Apesar do serviço de streaming ter outras séries animadas para o público adulto – como BoJack Horseman e Rick e Morty – Super Drags foi a primeira a despertar polêmica.
A polêmica cresceu ainda mais depois que a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) lançou uma nota oficial condenando o desenho animado. Nela, afirmando que fala por 40 mil médicos brasileiros, a entidade diz que “vê com preocupação” o anúncio de lançamento de Super Drags. A nota segue:
A SBP respeita a diversidade e defende a liberdade de expressão e artística no País, no entanto, alerta para os riscos de se utilizar uma linguagem iminentemente infantil para discutir tópicos próprios do mundo adulto, o que exige maior capacidade cognitiva e de elaboração por parte dos espectadores.
O Ministério Público Federal (MPF) também se manifestou, pedindo que a série não seja incluída no catálogo infantil, alegando seu dever para “a proteção dos interesses individuais indisponíveis, difusos e coletivos” de crianças e adolescentes.
A Netflix, porém, nunca disse que a animação seria disponibilizada na plataforma para crianças. Procurada pelo jornal O Estado do São Paulo – um dos primeiros a divulgar a nova série, o veículo produziu uma nova reportagem só para esclarecer os boatos – o serviço disse:
Super Drags é uma série de animação para uma audiência adulta e não estará disponível na plataforma infantil. A seção dedicada às crianças combinada com o recurso de controlar o acesso aos nossos títulos faz com que pais confiem em nosso serviço como um espaço seguro e apropriado para os seus filhos. As crianças podem acessar apenas o nosso catálogo infantil e colocamos o controle nas mãos dos pais sobre quando e a que tipo de conteúdo seus filhos podem assistir.
Se Super Drags é um desenho pra adultos pq a Sociedade Brasileira de Pediatria está se incomodando? pic.twitter.com/B2hXiUrcer
— Carne de Segunda ?️? (@carnedesegundaa) 20 de julho de 2018
Reação das redes sociais
Nas redes sociais, usuários chamaram a atenção para o fato de que só a série que tem drag queens como personagens principais ter “preocupado” a Sociedade de Pediatras. Como questionou @gabiol:
engraçado, a sociedade brasileira de pediatria deveria então tentar barrar todos os desenhos para adultos que existem no netflix né? mas escolheram só a super drags pq será em? ???
— gabiol (@gabiol) 20 de julho de 2018
O perfil Não Me Kahlo, que divulga postagens feministas, lembrou desenhos antigos que nunca foram alvo de censura ou discussão, por exemplo:
A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) “vê com preocupação o anúncio de estreia de um desenho animado cuja trama gira ao redor de jovens que se transformam em drag queens super-heroínas”. O desenho é o “Super Drags”, da @NetflixBrasil, uma animação para ADULTOS.
Also: ? pic.twitter.com/3d0ORya9pz
— Não Me Kahlo (@NAOKAHLO) 20 de julho de 2018
Outro usuário falou de mais uma polêmica recente no Brasil, a onda de um movimento anti-vacinação, que não gerou manifestação pela entidade de pediatria. Com queda na cobertura de vacinas, doenças como sarampo, rubéola e difteria voltaram a ter surtos no país.
Acho que a Sociedade Brasileira de Pediatria devia se preocupar com a histeria coletiva de não vacinar as crianças aos invés de se preocupar com Super Drags, desenho para ADULTOS CARALHO!
— ?Sumo Sacerdote do Satanismo Gospel ? (@_o_demo_) 20 de julho de 2018
Ainda respondendo ao jornal Estado de São Paulo, a Netflix salientou que “as questões de inclusão e diversidade são extremamente importantes” para a empresa e manteve o lançamento da série para o segundo semestre de 2018.
Além da polêmica
A questão, porém, parece mexer em um assunto mais delicado. Embora drag queen não seja o mesmo que uma expressão de identidade de gênero, já que é temporária e não necessariamente ligado a como a pessoa se identifica, o preconceito com a série pode estar ligado a um traço mais profundo da sociedade brasileira.
O Brasil é apontado como um dos países que lideram estatísticas de violência contra pessoas LGBTI. Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil – Antra, entre janeiro e dezembro de 2017, 179 pessoas transexuais e travestis foram assassinadas no país.
Em entrevista ao site Nexo, a psicóloga Desirèe Monteiro Cordeiro, do Ambulatório Transdiciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual (Amtigos), que atende adolescentes no Hospital das Clínicas de São Paulo, afirma estar de acordo com a necessidade de controlar conteúdo envolvendo violência e sexo explícito para crianças, mas que as críticas em torno da série estão mais ligadas a um tabu.
Os rapazes se transformam em drags e ganham superpoderes. O Super-Homem também põe uma fantasia para combater o crime e isso não é uma questão (…) Se ainda não se sabe nada sobre a série, por que essa retaliação? Isso é censura. Se a criança não dormir às 20h e assistir à novela, ela também vai estar exposta a sexo e violência. É um conteúdo que não é pensado para a criança.
A médica também chama a atenção para a importância de se conversar sobre gênero e sexualidade com crianças, com naturalidade:
Falar de identidade de gênero e sexualidade, homossexuais, travestis, transexuais, nas escolas ou onde quer que seja, não significa que tem alguém ali tentando incutir na cabeça das crianças que a diversidade sexual é linda e todo mundo tem que ser também.
(…)
Não é comum, mas existem crianças transexuais. Nesse caso, os outros pais devem conversar porque, no caso de uma escola, as crianças vão questionar. E geralmente elas lidam de um modo muito mais simples. Elas olham e perguntam se é menino ou menina. Dada a resposta, a vida segue e elas vão brincar.