- Global Voices em Português - https://pt.globalvoices.org -

Boicote contra cantora argentina na França aquece o debate sobre apropriação cultural

Categorias: América Latina, Argentina, Cuba, Arte e Cultura, Etnia e Raça, Mídia Cidadã, Mulheres e Gênero, Música
[1]

A cantora argentina Chocolate Remix no final do Pride 2017, em Buenos Aires, Argentina. Foto de Nubeamarela, compartilhada sob uma licença Creative Commons (Attribution-Share Alike 4.0 International)

A apropriação cultural vem se tornando um assunto de destaque, especialmente no mundo da música. Por um lado, há aqueles que pertencem a uma cultura, mas são constantemente excluídos do poder e da comercialização. Por outro, há aqueles que gozam de certos privilégios e tem autorização para reproduzirem e se beneficiarem de produtos culturais concebidos e criados por membros do primeiro grupo.

Com isso, surgem perguntas que contribuem para a complexidade da discussão: quem tem direito de usar esses produtos culturais com legitimidade? Ainda é apropriação se for entre pessoas que pertencem a grupos diferentes, cada um oprimido a sua maneira?

O debate mais recente sobre apropriação cultural na América Latina é acerca do trabalho da argentina Romina Bernardo [2], mais conhecida como “Chocolate Remix”, que tem cantado, colaborado e produzido reggaeton (um estilo de música originária da América Latina e do Caribe). Ela se identifica como lesbofeminista, conforme declarou em entrevista de julho de 2017.

Durante seu mais recente tour pela Europa, a casa de shows onde ela faria uma apresentação, chamada La Mutinerie, em Paris, cancelou o evento marcado para 26 de abril depois que um grupo de ativistas francesas negras protestou e acusou a cantora de apropriação cultural.

Romina Bernardo respondeu às críticas [3] questionando se aquelas ativistas francesas trans e queer poderiam realmente falar com legitimidade sobre apropriação cultural, dada a nacionalidade francesa. A discussão continuou com reações dos dois lados, incluindo novas reflexões de Romina sobre o assunto.

Apesar disso, embora a cantora posteriormente tenha reconhecido parte das questões levantadas, o debate e as reações a ele proporcionaram conversas sobre opressão e privilégio que seguiram adiante nas redes.

No mesmo palco onde Romina cantaria, aconteceu um debate no lugar de um show. Ela também trocou experiências com a famosa rapper cubana Odaymar Pasa Kruda [4], membro do Krudxs Cubensi [5], que participou da conversa por telefone.

Pasa Kruda respondeu à primeira reação de Romina às ativistas francesas via Facebook [6]:

Nos silenciaron al decir que estábamos hablando por personas latinas negras y que nosotros, la gente negra cuir y la gente trans eran más privilegiados que ellxs porque somos franceses”. Lo cual es una prueba evidente de que no tienen idea de qué es la apropiación cultural, el colorismo, el racismo y la negrofobia y cómo funciona. ¿Cómo puede una mujer negra o una persona trans ser privilegiada entre cualquier persona en este planeta sobre una base racial?

Querem nos silenciar dizendo que estamos falando pelas pessoas latinas negras e que nós, mulheres negras queer e trans, somos mais privilegiadas do que elas porque somos francesas. Isso é uma prova óbvia de que elas não têm ideia do que são e como funcionam a apropriação cultural, o racismo, o colorismo e a negrofobia. Com relação à raça, como pode uma mulher negra ou uma pessoa trans ser mais privilegiada do que qualquer outra pessoa no mundo?

Romina deu a seguinte declaração em seu perfil público no Facebook:

Celebro que las voces de personas negras se [hagan] oír y apoyo definitivamente la lucha antiracista, lo que lamento en profundidad es que aún no se oiga la voz de personas latinas migrantes, también racializadas, que acaba quedando silenciada entre medio del desconocimiento de realidades y subordinada a una lectura que parece plantear un orden jerárquico de opresiones sin tener en cuenta la transversalidad de las mismas. El resultado: dos grupos oprimidos enfrentados desvalorizando sus luchas mutuamente en un espacio blanco francés.

Celebro que as vozes de pessoas negras se façam ouvir e definitivamente apoio a luta contra o racismo. O que lamento muito é que ainda não se escute a voz de migrantes latinos, também racializados, que acaba ficando silenciada em meio ao desconhecimento de realidades e subordinada a uma leitura que parece querer implantar uma ordem hierárquica de opressões, o que não leva em conta a transversalidade delas. Resultado: dois grupos oprimidos se enfrentando e desvalorizando mutuamente suas lutas em um espaço francês branco.

Essa resposta abriu caminho para discussões e reflexões que foram compartilhadas nas redes sociais, às quais a cantora respondeu com outra declaração [7], cujos argumentos ainda são alvo de crítica, mas que reconhece algumas omissões feitas em seus comentários anteriores, tanto nas redes sociais quanto no palco.

Apesar disso, àquela altura, o debate nas redes sociais já havia deflagrado uma discussão intensa muito marcada, segundo Pasa Kruda, pela violência [8]:

Durante el debate físico exigido por Romina y sus aduladoras, así como también en los comentarios escritos en los foros en línea se ha desenmascarado el facismo rampante que se arrastra en la comunidad blanca y blanco mestiza latina aún siendo cuir, aún siendo lesbianas, aún siendo emigrantes, aún siendo feministas. Seguimos esperando la declaración de Romina mientras sus fanes nos ofenden con los más dolorosos insultos y ataques racistas.

Durante o debate iniciado por Romina e seus admiradores, assim como nos comentários escritos em fóruns on-line, um fascismo descarado foi revelado, rastejando nas comunidades branca e mestiça latinas, até mesmo entre queers, lésbicas, imigrantes, feministas. Seguimos aguardando a declaração de Romina, enquanto seus fãs nos ofendem com os mais dolorosos insultos e ataques racistas.

“Há uma imensa história de músicos talentosos antes de você… silenciados”

Em um artigo chamado “Chocolate Remix: reggaeton, apropriação cultural e extrativismo estético [9]“, o jornalista e rapper Fabian Villegas [10] chama atenção para outros gêneros musicais que já foram espaço de representatividade e passaram a ser cultivados por pessoas brancas.

Los procesos de apropiación cultural son tan viejos como los primeros espirales de producción, circulación y mediatización cultural. Para decirlo a cabalidad no hay posibilidad de que pensemos industria cultural al margen de procesos históricos de apropiación cultural y extractivismo estético. Del rock, al jazz, del jazz al tango, y del tango al flamenco, todos estos, solo por mencionar algunos ejemplos, se han erigido sobre estructuras y prácticas de apropiación, robo, despojo, “desahucio”, invisibilidad de los grupos racializados y de su propia producción y experiencia cultural.

Os processos de apropriação cultural são tão antigos quanto os primeiros ciclos de produção, circulação e midiatização cultural. Para falar a verdade, seria impossível pensar na indústria cultural à margem de processos históricos de apropriação cultural e extrativismo estético. Do rock ao jazz, do jazz ao tango, do tango ao flamenco: todos eles, só para citar alguns exemplos, se construíram sobre estruturas e práticas de apropriação, roubo, desapropriação, expulsão e invisibilização de grupos racializados e sua produção e experiência cultural.

Villegas também explica os aspectos mais complexos:

Lo conflictivo también está en que por tu privilegio racial, termines no solo por apropiarte de esa práctica cultural, sino que tu privilegio racial te otorgue la capacidad de resignificar, estetizar, sofisticar y ampliar la incidencia de esa práctica cultural. Y no conforme con eso, estés consciente que es por tu condición de blanco que esas prácticas culturales empiezan a ser asimiladas y aceptadas en el mainstream y en la industria cultural. Atrás de ti había una fila inmensa de músicas y músicos talentosos, pero la industria y el significante colonial los silenció, invisibilizó o relegó al anonimato, porque tu blanquitud hace cómoda, fresca, y cool esa práctica cultural…

O conflito também está no fato de que você, com seu privilégio racial, pode não só se apropriar de uma prática cultural, mas também ressignificar, estetizar, sofisticar e ampliar a incidência dela. Tenha consciência de que é pela sua condição de branco que essas práticas culturais começam a ser assimiladas e aceitas na cultura hegemônica e na indústria cultural. Antes de você, existiu uma fila imensa de músicos e músicas talentosos, mas a indústria e o significante colonial os silenciaram, invisibilizaram ou os relegaram ao anonimato, porque a branquitude torna essa prática cultural mais cômoda, moderna e legal.

A escritora Yolanda Arroyo Pizarro, proeminente poeta porto-riquenha, participou do debate com seu poema ¡Soñé!: Versos contra la apropiación cultural de lo Afro [11] (Sonhei! Versos contra a apropriação cultural afro), publicado no Afroféminas:

Soñé que en honor al feminismo
y al antirracismo
y al colorismo
quiso honrar el dolor ajeno
y evitar el vejamen discriminatorio
sobre nuestras cuerpas negras
no hacerlo es ser partícipe aún del patriarcado
de la heteronorma
del machismo
del bullying
de continuar pisoteando a otras y otros

Sonhei que em honra ao feminismo

ao antirracismo

e ao colorismo

quis honrar a dor alheia

e evitar o vexame discriminatório

das nossas corpas negras

não fazê-lo é participar ainda do patriarcado

do heteronormativismo

do machismo

do bullying

de continuar atropelando outras e outros

Em El barrio antiguo [12] (O bairro antigo), Denise Alamillo e Emilie Mourgues, da França, analisam de perto os argumentos de Romina.

En el debate en facebook a Romina se le hicieron varios señalamientos sobre su trabajo, el título de su proyecto artístico “Chocolate remix”, el uso de la frase “Me gustan las Negras” en una canción/video en el que sale una mujer afrolatina exotizada y sexualizada. A esto la artista respondió que no se estaba refiriendo a ‘Las Negras afrodescendientes’ sino que en su país ‘así se les dice a las personas mestizas que son pobres, de clase social baja. Con este argumento me parece se abrió la caja de Pandora y quedó al descubierto el extremo racismo estructural que se encuentra enraizado en la cultura Argentina, en donde se ha normalizado y pareciera ser evidente que Negrx en Argentina es un insulto peyorativo que hay que queerizar y reapropiarselo (hasta siendo blanqux) con orgullo sin siquiera hacer conciencia de lo que se está diciendo, cómo y a quiénes.

No debate do Facebook, foram feitas várias sinalizações à Romina sobre seu trabalho, sobre o título de seu projeto artístico, “Chocolate remix”, e sobre o uso da frase “Gosto de negras” em uma música e videoclipe nos quais há uma mulher afrolatina apresentada de forma exótica e sexualizada. A artista respondeu que não estava se referindo às “negras afrodescendentes”, mas que em seu país “as pessoas mestiças que são pobres, de classe social baixa, são chamadas assim”. Com esse argumento, me parece que se abriu a caixa de Pandora e se fez enxergar o extremo racismo estrutural que se encontra enraizado na cultura argentina, onde foi normalizado, e parece evidente que “negrx” é um insulto pejorativo que deveria ser pensado de uma maneira mais queer, mas foi reapropriado (mesmo por “brancxs”) com orgulho, sem sequer gerar consciência do que se está dizendo, como e para quem.

Apesar de Romina ter mudado a letra de sua música “Como me gustan a mí (Como eu gosto delas), que foi ferrenhamente criticada por afrofeministas, ela confirmou que continuará a usar seu codinome.

A autora dessa matéria destacou a carta do grupo Ile-Iwe / La Escuela em seu blogue pessoal: ‘¡No más Chocolate Remix! ¡El Feminismo Negro importa!’ [13] (Chega de Chocolate Remix! O feminismo negro importa!), escrita em resposta à carta de Romina, apesar de não focar somente nela. Foi assinada por ativistas de origem africana de vários países e com várias identidades de gênero, orientações sexuais, e aliados:

Romina Bernardo parece no comprender el insistente cuestionamiento de su nombre “Chocolate”, cuando justifica y confirma, diez días después del debate inicial, su intención en continuar utilizándolo. Queremos volver a insistir en que ese alias estigmatiza, cosifica, fetichiza, re-traumatiza y oprime a las personas negras en general, no importa en qué lugar del planeta.

Romina Bernardo parece não entender o questionamento insistente a seu nome “Chocolate”, quando tenta justificar e confirma, dez dias depois do debate inicial, sua intenção de continuar o utilizando. Queremos voltar a insistir que esse codinome estigmatiza, coisifica, fetichiza, retraumatiza e oprime pessoas negras em geral, não importa em qual lugar do planeta elas nasceram.

Revisado por Izabella Sepulveda [14]