Por Corinne Redfern
Há duas semanas, pouco depois das 2h da manhã, o barco de Sami virou com as ondas do rio Mekong e lançou todos os seus pertences na água, incluindo Lydie, sua filha recém-nascida. “Num piscar de olhos, ela se foi”, recorda a adolescente de 16 anos de idade.
Sem poder dormir com o vento que açoitava o modesto refúgio de lona, única proteção contra as intempéries, Sami, que havia passado as últimas duas horas sentada com os joelhos contra a barriga, desejava que já estivessem de volta à terra firme. Enquanto a tempestade os assolava, o marido de Sami, Luc, de 25 anos, era todo concentração ao mesmo tempo em que se ocupava de espalhar seu peso pelo barco, construído artesanalmente, numa tentativa de impedir que sua pequena casa tombasse. A filha deles dormia calmamente na rede de algodão verde-escuro. “Nem foi preciso embalá-la”, conta Sami agora. “O vento estava forte o suficiente para fazer isso por mim”. À proporção que a tempestade ganhava força, ela cogitou pegar Lydie nos braços por precaução. “Mas eu não sabia se era melhor deixá-la continuar como estava. E quando o barco virou, não pude segurá-la a tempo. De repente, eu estava debaixo da água e tudo era frio e negro.”
Luc conseguiu alcançar Lydie primeiro. Mergulhando mais fundo, retirou rapidamente tachos, panelas e roupas para poder soltar a filha das camadas de material que a mantinham presa. Ao chegar à superfície, o bebê de um mês e meio começou a gritar e Sami caiu em prantos. “Achei que ela havia morrido. Bebês morrem a todo instante por aqui. Não sabemos se vamos tê-los pela vida toda ou apenas por pouco tempo.”
Tanto Sami quanto Luc cresceram dentro da água. Os membros da Comunidade Cham, um grupo minoritário de cerca de 288.000 cambojanos muçulmanos, vivem, em grande parte, ao longo do rio Mekong e em torno das margens do lago Tonle Sap, nas províncias de Chhnang e Kompong Cham. Suas famílias podem traçar uma história oral de pesca e de tradição marítima de 4000 anos, que inclui migração pelo Sudeste Asiático e sobrevivência ao genocídio do Khmer Vermelho entre 1975 e 1979.
Sami e Luc também fazem parte de uma nova geração de pais adolescentes cujo número quase duplicou no Camboja desde 2010. Mesmo sendo ilegal se casar com menos de 18 anos, jovens entre 15 e 17 anos acabam se apaixonando por vizinhos de barco. A falta de educação sexual ou qualquer tipo de educação faz com que eles, mesmo sem intenção, acabem formando família rapidamente. Essa falta de experiência de vida, combinada com uma herança cultural difícil de superar, tem dado origem a uma nova crise de sobrevivência.
Embora os pais sejam cada vez mais jovens, o modo de vida da comunidade mudou muito pouco. Todas as manhãs, quando o sol nasce, as famílias saem do espaço destinado à dormida nos pequenos barcos de madeira e, juntas, se dirigem para águas mais profundas em busca de pequenas, escorregadias e lamacentas enguias e de carpas prateadas conhecidas como trey riel. As mães adolescentes, em pé na proa do barco, usam hijabes folgados para proteger o pescoço do sol, enquanto os maridos jogam no rio redes tecidas à mão esperando que se encham.
Em um dia bom, os depósitos debaixo do convés ficam abarrotados de pescado fresco e as famílias vão direto ao mercado de peixe Prev Pnov, a 12 km ao norte de Phnom Penh, onde o quilo de peixe vale KHR 6000 (riel cambojiano) ou US$ 1,50. Sopa de peixe e arroz são servidos no café da manhã e almoço. Peixe frito e arroz estão no cardápio do jantar.
Entretanto, dias bons como esses estão ficando cada vez mais raros e, para essa geração, a espera também parece valer cada vez menos.
Nos últimos anos, novas tecnologias e métodos de pesca ilegal, como o uso de bateria para eletrocutar cardumes inteiros de peixe, começaram a esgotar a pesca local. A meta do governo de produzir 1.2 milhão de toneladas de peixe até 2019, com o objetivo de reduzir as importações feitas dos países vizinhos como o Vietnã, tem encorajado o estabelecimento de fazendas de pesca industrial. Com isso, as famílias Cham são forçadas a levar os barcos por mais de três horas rio acima para conseguir uma boa pescaria. Quando chegam com seus baldes de carpa em Prek Pnov, descobrem que os preços caíram e isso faz com que cada vez mais seja difícil obter lucro. À medida que hotéis luxuosos são inaugurados nas margens do rio Tonle Sap, a comunidade Cham é ainda mais pressionada a espalhar seu campo de atuação e ficar atracada no meio do rio durante a noite, o que aumenta o risco de naufrágio e afogamento.
Assim, para os jovens pais adolescentes com filhos para alimentar, a vida no rio está começando a perder um pouco de seu atrativo. “Minha filha Lyna chora o dia todo porque está com fome e eu não tenho nada para alimentá-la”, explica Ros Herny, 17, que aprendeu a nadar há apenas dois anos, apesar de ter vivido em barcos desde o nascimento.
“Enquanto eu crescia, comia peixe no café da manhã, almoço e jantar com um pouco de arroz para saciar minha fome. Mas o peixe está se tornando um artigo de luxo que já não podemos deixar de vender para nos alimentar. Então, alimento Lyna com arroz e água do rio no café da manhã, almoço e jantar. Não há peixe. Ela não tem energia e é pequena para sua idade. Isso me faz questionar por que vivemos dessa maneira.”
A geração dos pais dela teve melhor sorte, comenta Herny. “Meus amigos e eu estamos começando as nossas famílias, mas não temos formação para competir com as grandes empresas. Com isso, nossos filhos ficam sem ter o que comer. Por outro lado, meus pais só tem que cuidar de si mesmos. Algumas vezes eles ainda têm muito peixe.”
Dak Gneng, gerente de projetos da filial local da ONG Friends International, comenta que tem encontrado um número crescente de mães adolescentes da comunidade Cham incapazes de alimentar os filhos.
“Quando converso com elas, tudo que me contam é sobre o quanto essa vida é perigosa”, explica Gneng. “Os pais dizem ‘esta é a nossa cultura, vocês têm que viver no rio e respeitar a água’. Entretanto, a geração mais nova é a que tem que enfrentar o desafio de alimentar suas famílias e competir com as grandes corporações. Eles estão cada vez mais infelizes aqui.”
Muitos jovens pais já começaram a procurar trabalho em outras indústrias, como a de roupas, e em barracas de feiras. Outros estão considerando até pedir esmolas ao longo do rio. “Eu não gosto disso, mas algumas vezes é tudo que podemos fazer”, afirma Herny. O marido de Sami, Luc, recentemente encontrou trabalho em um barco turístico e navega pelo rio ao entardecer, enquanto os visitantes tiram fotos do lugar que ele chama de casa. “Ele diz que quer poupar dinheiro suficiente para alugar um apartamento no centro da cidade”, comenta Sami. “Não queremos que nossa filha cresça com fome e com medo como nós.”
Mas a mesma juventude que fomenta a insatisfação pode também dificultar a saída da comunidade, particularmente quando vem acompanhada de adeus aos pais. Hasanas Rong, 17 anos, está criando sua filha de dois meses sozinha, pois o marido a deixou para ir morar na cidade. “Ele disse que não quer mais ser pescador porque o peixe desapareceu”, explica. “Nós brigamos porque eu não me sentia pronta para deixar minha família e ele decidiu se divorciar de mim.” Ela estava grávida de três meses na época e não o vê desde então.
Hole Son, 34, irmão de Rong, acredita que a irmã deveria ter deixado os pais e seguido o marido em busca de um rendimento estável. “Rong é muito jovem para ter filhos, mas isso é normal aqui”, afirma. “A maioria das meninas é adolescente quando engravida pela primeira vez. Agora temos que sustentá-la, já que ela não tem emprego e a filha não tem nada para comer. Constantemente, vejo Rong passar vários dias sem comer para não ter que passar pela vergonha de pedir mais ajuda aos nossos pais.”
Hole Son diz que quando a pescaria é boa, ele consegue ganhar até KHR 60.000, ou US$15, em um só dia e ajudar a irmã. “Mas quando a pescaria vai mal, não ganho nada.” Nesses dias a geração mais velha tem prioridade. “Como um sinal de respeito, alimentamos nossos pais primeiro, mesmo que os mais jovens fiquem sem comida.”
Rong se fecha quando perguntam sobre a situação dela. “É muito ruim para meu bebê”, explica Rong depois de algum tempo. “Não posso amamentá-la, não tenho leite suficiente e ela chora de fome o dia inteiro. Ficamos expostas ao sol o dia todo, o que nos deixa doentes também. Tudo é muito ruim para nós aqui. Tenho medo por ela.”
Sami concorda. “Quando eu era criança, tinha fome também, mas nunca tanta fome como agora. Olhando para Lydie, penso que talvez a vida seja melhor longe da água. Talvez a água não seja nossa amiga, afinal.”
Corinne Redfern é uma premiada jornalista independente cujos trabalhos já foram publicados no the Telegraph, Guardia, Marie Claire, Stylist, Sunday Times e BBC. Atualmente se encontra no Camboja. Este artigo é parte do Crying Hunger Project produzido com o apoio do Centro Europeu de Jornalismo.
Revisado por Izabella Sepulveda