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“Que seja uma morte rápida”: o testemunho de um morador de Ghouta Oriental

Categorias: Oriente Médio e Norte da África, Síria, Direitos Humanos, Esforços Humanitários, Guerra & Conflito, Mídia Cidadã, The Bridge

Foto por Samir Al Doumy. Usada sob permissão. Fonte [1].

O texto a seguir é o depoimento de Aous Al Mubarak, dentista na cidade de Harasta, em Ghouta Oriental, onde o regime sírio e seus aliados vêm travando uma intensa campanha de bombardeios. Controlada por rebeldes contrários ao regime, Ghouta Oriental está sitiada desde o final de 2013 [2].

Mais de 120 pessoas foram mortas [3] entre 6 e 8 de fevereiro e outros 110 morreram [4] em 19 do mesmo mês. Há estimativas de que que o número total de civis mortos nos três primeiros meses do ano passe de mil. Desde 18 de fevereiro, o número de mortos ultrapassou 650 pessoas, sendo pelo menos 150 crianças. A infraestrutura civil também foi seriamente danificada, com mais de 25 hospitais e centros de saúde atingidos [5], alguns mais de uma vez em quatro dias.

Essa história foi publicada originalmente em árabe, no dia 1º de março de 2018.

Escrevo estas palavras após dez dias do pior sofrimento que já testemunhei nos últimos sete anos. Prendo a respiração, como todos fazem por aqui, e meu peito se enche de tristeza pelos horrores que presenciei. Os bombardeios não cessaram. Os bombardeios contra civis diminuíram, mas de forma geral se intensificaram e confrontos acontecem o dia todo, em todas as frentes de Ghouta que as forças de Assad e seus aliados tentam invadir.

Não quero que meus leitores pensem que estou evitando a verdade com o que digo, principalmente após a Resolução 2401 do Conselho de Segurança [6], que foi aprovada por todos os membros, incluindo o governo russo, e após esse mesmo governo anunciar um cessar-fogo diário de cinco horas [7] para evacuar os civis, contrariando a resolução do Conselho de Segurança. Estamos acostumados com as grandes potências fazendo declarações que não se coadunam com suas ações. Na realidade, não vimos um cessar-fogo de cinco minutos nos últimos dez dias.

É difícil descrever a exaustão, a catástrofe e os horrores, e seus efeitos cumulativos ao longo dos últimos sete anos. Mas para colocar minha descrição da realidade atual no devido contexto, é necessário resumir tudo isso.

A revolução síria começou na primavera de 2011, inspirada pelas revoluções da Primavera Árabe que a precederam, que buscavam acabar com as tiranias e as ditaduras e devolver o poder ao povo. Protestos pacíficos irromperam em várias cidades e vilarejos da Síria. Assad, que herdou o governo de seu pai, reprimiu os protestos com mortes, prisões e torturas, recusando dar quaisquer direitos às pessoas.

Cerca de um ano após o início da revolução, depois de milhares de mártires e inúmeras prisões, após a falta de resposta do regime às reivindicações, mesmo as mais insignificantes, e a continuidade da repressão brutal, os manifestantes começaram a pegar em armas. A revolução tornou-se militarizada. Grupos radicais, cuja criação foi facilitada pelo regime de Assad, exploraram a situação sob a égide de proteger os civis e do direito à legítima defesa, ocultando sua agenda radical e fingindo tomar essas atitudes por altruísmo e abnegação. Conforme suas forças aumentaram em número, eles começaram a exibir sua ideologia radical e as violações aos direitos humanos, sem que ninguém ousasse desafiá-los por medo de legitimar a campanha indiscriminada do governo contra todos os opositores. O regime nunca parou de bombardear as áreas que não estavam mais sob o seu controle, atacando civis diariamente nesses locais.

Essa era a situação na maioria das áreas fora do controle do regime após os três primeiros anos. Porém, em 2013, Ghouta Oriental passou por dois grandes eventos que tiveram enormes efeitos na região.

O primeiro evento foi o segundo maior massacre [8] por arma química [9] desde a Segunda Guerra Mundial (atrás apenas do Massacre de Halabja [10], em 1988, perpetrado pelo regime de Saddam Hussein). Quase 1.500 pessoas morreram, em sua maior parte mulheres e crianças, e milhares ficaram feridas. Foi um dia terrível, comparado, por testemunhas, com descrições do dia do Juízo Final. O regime de Assad permaneceu impune após aceitar entregar as armas. Mas, na realidade, o regime não abdicou de todo o seu arsenal de armas químicas e as utilizou dezenas de vezes desde então. O maior caso foi o da cidade de Khan Sheikhoun [11], que uma investigação conjunta entre a Organização para Proibição de Armas Químicas (OPCW, na sigla em inglês) e a ONU atribuiu ao regime de Assad. 

O segundo foi o sítio imposto [12] pelo regime à Ghouta Oriental, que levou à fome e ao corte nos suprimentos de medicamentos, combustíveis, eletricidade, água e outros serviços essenciais, forçando a população a recorrer a métodos primitivos para satisfazer suas necessidades. Centenas morreram de inanição e falta de tratamento médico, além dos milhares que caíram vítimas dos bombardeios. O sítio continua até hoje, pois o regime permite que apenas alguns poucos recursos cheguem até a área, disponíveis a valores dez vezes mais altos que os praticados em Damasco, e bloqueia a entrada de mercadorias por meses a fio, fazendo dos preços em Ghouta os mais altos do mundo.

Após cinco anos, a região com 450 mil habitantes já esqueceu o que era viver sem o sítio e há crianças que nunca viram uma fruta, que não sabem o que é brincar em playgrounds, ter eletricidade ou televisão. Elas não sabem o que é viver em segurança.

Confrontos entre grupos radicais e entre radicais e grupos mais moderados causaram ainda mais divisões dentro de Ghouta Oriental. Mas o radicalismo diminuiu com o enfraquecimento do Estado Islâmico (EI) e a diminuição do Nusra para menos de 1.000.

Não quero dizer que tudo o que testemunhamos é horrendo. A sociedade conseguiu fazer grandes avanços em termos de autogoverno democrático, o mais importante sendo as eleições para conselhos locais em que todos, inclusive mulheres, podem participar — algo que nunca aconteceu nos 50 anos de governo dos Assads pai e filho. Nós também assistimos ao desenvolvimento de muitas iniciativas civis para reforçar ideias de direitos humanos e desenvolvimento social.

Mas tudo isso é comprometido de forma constante pelos ataques aos civis feitos pelo regime de Assad. O número de mortos em Ghouta alcançou as dezenas de milhares, incluindo aqueles cujos pedidos de evacuação médica foram negados pelo governo. Apesar de toda a retórica sobre a diminuição dos ataques e os acordos de trégua, os crimes do regime nunca pararam. Os residentes de Ghouta escutam as notícias e as declarações e então olham a realidade em volta apenas para perceberem que nada mudou.

Ninguém acreditou quando dissemos que o regime não entendia nada sobre política, exceto formas de regurgitar sua propaganda em foro internacional e utilizar suas soluções militares, rejeitando a ideia de negociar direitos para o povo. É impossível alcançar uma solução política porque o regime se recusa a abdicar de qualquer parte de sua “posse” do país e, talvez, seja mesmo incapaz de fazê-lo.

Em conformidade com essa posição, o regime lançou uma campanha de brutalidade sem precedentes em Ghouta na noite de 18 de fevereiro de 2018. Nós sobrevivemos a centenas de massacres e atentados, mas nunca vimos nada semelhante.

Todos os dias, dezenas de bombas, mísseis e bombas de barril [13] são lançadas. A qualquer momento, um enxame de aviões de caça e helicópteros surge sobre Ghouta. Áreas residenciais são atacadas com fogo de artilharia e lança-mísseis sem trégua. Ghouta está, agora, completamente paralisada e os moradores foram forçados a buscar abrigo subterrâneo. As ruas estão desertas e as lojas, fechadas.

Os caças usam um tipo de bomba altamente explosiva que nunca vimos antes. Apenas uma delas é capaz de colocar abaixo um prédio de seis andares. Dezenas de prédios desabaram com seus ocupantes e abrigos subterrâneos desmoronaram em cima de mulheres e crianças, destroços esmagando-os até a morte.

Os bombardeios nos cercam por todas as direções, mísseis nos ensurdecem e nos fazem recear que sejamos os próximos. Mas todos concordamos em um aspecto: se tem de ser, então que seja uma morte rápida para nós e nossos filhos. Que seja uma morte sem dor, não uma morte lenta sob os escombros.

Hospitais subterrâneos estão abarrotados com os mortos e feridos e os médicos não têm mais forças para trabalhar. Hospitais são atacados sistematicamente para impedir que os feridos sejam tratados, da mesma forma que o regime fez contra os manifestantes em 2011, impedindo-os de buscar cuidados médicos e prendendo-os assim que passassem da porta.

Quanto ao Capacetes Brancos (como a Defesa Civil Síria [14] é conhecida), eles são as pessoas mais nobres que conheci desde o início da revolução. Eles são os verdadeiros heróis, correndo imediatamente para as áreas  atacadas, apesar da quantidade e da intensidade dos bombardeios, para salvar os feridos e tirar as vítimas de sob os escombros. Abrigos subterrâneos desmoronando são um fenômeno novo para os Capacetes Brancos, mas não os impediu de cavar túneis de ruas próximas para alcançá-los.

Alguns foram mortos no exercício de suas funções e bombardeios não poupam seus centros, tentando tirá-los de serviço e matar o maior número de pessoas. Não surpreende que o regime de Assad e seus aliados os odeiem e disseminem mentiras sobre eles. A mais recente diz que estão preparando um ataque químico contra civis e planejam jogar a culpa em Assad.

Apesar dos grandes esforços dos grupos civis para diminuir o sofrimento e os horrores, o desastre é grande demais para seu impacto ser amenizado. Muitos abrigos subterrâneos não estão equipados com banheiros ou mesmo as mais básicas instalações. As pessoas passam a maior parte dos dias em completa escuridão, esperando que os violentos bombardeios cessem. Muitos perderam suas casas nos atentados. Eles não encontram nada para comprar do lado de fora e não têm dinheiro para deixar a área porque estão vivendo um dia de cada vez e é muito difícil encontrar trabalho.

Embora os bombardeios tenham diminuído nos últimos dias — as violações haviam se intensificado nas linhas de frente de Ghouta, atacadas por todos os lados pelo regime —, as coisas permanecem paralisadas. Ninguém se arrisca a retomar uma vida normal por medo de morrer no próximo bombardeio.

Quero lembrar a todos que há outros países lutando na Síria, aliados ao regime e à oposição, deixando que os civis paguem o preço de uma guerra. Esses mesmos governos já pediram desculpas pelos massacres que seus ancestrais cometeram contra os povos nativos americanos, africanos e judeus. Talvez eles esperem que seus netos peçam desculpas pelo que estão fazendo conosco hoje.

Apesar de tudo, há, sim, um aspecto positivo que devemos ter em mente: a solidariedade que temos recebido de pessoas ao redor do mundo. A todos aqueles que estão do nosso lado e lutam pela nossa liberdade e dignidade, nós somos muitíssimo gratos. Eles também estão se defendendo, pois uma vitória dos regimes tirânicos e brutais sobre aqueles que clamam por liberdade e democracia representa uma séria ameaça aos valores fundamentais da liberdade, justiça, democracia e dos direitos humanos.