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Após incêndio fatal na Rússia, insensibilidade do governo e “trolagens” geram indignação

Categorias: Europa Oriental e Central, Rússia, Desastre, Mídia Cidadã, Protesto, RuNet Echo

Vladimir Putin visitou um memorial improvisado para as vítimas do incêndio no shopping Kemerovo, enquanto os russos reclamavam sobre a insensibilidade oficial do país em relação ao trágico incidente // Crédito: kremlin.ru. CC BY 4.0 [1]

Em 25 de março, um grande shopping da cidade siberiana de Kemerovo pegou fogo e matou mais de 60 pessoas — muitas das vítimas eram crianças. Nos dias e horas que se seguiram, os moradores da cidade criticaram duramente as administrações regional e municipal pela má gestão da crise, e também a ação dos primeiros socorristas pela resposta muito lenta.

Enquanto os habitantes da cidade tomavam as ruas e a internet, os robôs on-line russos, direcionados para tuítes internos [2], dedicavam-se a minimizar a indignação do povo e a desviar a culpa de oficiais do governo. Essa campanha também reflete o tratamento desdenhoso e sempre opressor que o governo dispensa às famílias das vítimas.

Conforme os debates se acirravam, tanto nas ruas como on-line, muitos achavam que o uso de boatos ou trolagens levou a um ambiente de informações errôneas e desconfiança.

Críticas pela lenta reação ao incêndio

O incêndio parece ter começado próximo à área de recreação infantil e logo se espalhado, encurralando muitas pessoas, incluindo dezenas de crianças que estavam no cinema do shopping. Como informado [3] pelo Meduza, um site de notícias russas com sede na Letônia, as famílias das pessoas presas entre as chamas não conseguiam acreditar que os primeiros socorristas levaram tanto tempo preparando os equipamentos e impediram os desesperados de entrar no local para resgatar seus filhos. Embora este último ponto talvez seja um procedimento padrão para evitar mais acidentes, as pessoas estavam furiosas. Contudo, elas guardaram sua fúria para as lideranças regional e municipal.

Igor Vostrikov, um pai que perdeu a irmã, esposa e três filhos no incêndio, deu seu depoimento à popular rede social russa, VKontakte [4]. Sua mensagem foi vista por mais de 700.000 pessoas no momento em que foi escrita, e compartilhada aproximadamente 8.000 vezes:

Моей семьи больше нет. Виноват правящий режим в моей стране.
Каждый чиновник мечтает воровать как Путин. Каждый гос служащий относится к людям как грязи(так же как и его выше стоящее руковотство к нему,и ко всем кто ниже)
Назначат козла отпущения и закроют тему,а угрозы(халатное отношение, тотальная коррупция, спаивание и деградация населения никуда не денется!)
Путин так и будет сам всех лично(точечно) наказывать-Указ проверить все Т.Ц. ,а ведь у нас ещё есть много других заведений, есть просто ветхие дома старые больници- трагедии могут случиться где угодно!
27.03 в Кемерово состоится митинг с 9.00 на площади советов. Приходите ко скольки сможете.
Максимальный репост.

Minha família se foi. O regime de governo do meu país é o culpado. Todos os burocratas sonham em roubar tanto quanto Putin. Todo servidor civil trata o povo como lixo (assim como os chefes fazem com eles, e com todos que estão abaixo deles). Eles vão achar um bode expiatório e esquecer o assunto, mas os perigos (negligência, corrupção generalizada, torpor e degradação da população) não vão terminar! Putin com certeza irá punir cada um pessoalmente, de modo limitado, com uma ordem para inspecionar todos os shoppings, mas temos muitos outros lugares, como casas degradadas, hospitais velhos. Pode haver uma tragédia em qualquer lugar!
Haverá um protesto em 27 de março, em Keremovo, às 9 horas, na Praça dos Soviéticos. Venham e fiquem o maior tempo possível.
Divulguem esta mensagem o máximo que puderem.

Não houve divulgação de informações oportunas sobre o número exato de mortos, e a indignação dos parentes das vítimas aumentou, bem como a fúria da população da cidade. Milhares se reuniram no horário e local [5]mencionados no post de Vostrikov no Vkontakte, onde permaneceram por dez horas.

Enquanto as pessoas se reuniam, a presença da polícia aumentou dramaticamente, criando imagens terríveis [6], uma vez que a polícia chegou com cassetetes para dispersar a multidão. Alguns que enfrentaram funcionários públicos foram acusados pelos mesmos oficiais de se “autopromover por meio da tragédia”. [7] Um deles era o próprio Igor Vostrikov, o mesmo cidadão indignado, cuja família inteira morreu no incêndio.

Esse tratamento inacreditável e abertamente hostil para com os sobreviventes refletiu-se na internet. O Meduza também reportou [8] que vídeos do desastre estavam repletos de “não curti” e de comentários pedindo que o povo não tirasse conclusões precipitadas e nem culpasse funcionários da cidade.

Ondas de “não curti” são comumente observadas em posts explicitamente opositores. Alguns russos duvidam do número oficial de 64 mortos, e algumas contas do Twitter começaram a acusar o governo de mentir e distorcer os fatos.

Alguns recorreram ao doxxing  [9]ou a publicar a informação de contato das pessoas que criticaram on-line a resposta da cidade de Kemerovo. A maioria das vezes, é possível reconhecer os “bots” ou impostores (um usuário real por trás de uma conta que emite um sinal para outras contas) por seus nomes de usuário:

Prestem atenção aos nomes destas contas [em referência ao nome da conta, que é uma longa lista de caracteres alfanuméricos e uma foto do perfil de Sergey Lavrov, o ministro do exterior da Rússia], que estão acusando os manifestantes de Kemerov de se ‘autopromover sobre os ossos [dos mortos]’ #TrollFactory

Pode ser difícil provar que há uma campanha on-line coordenada contra esses protestos, mas o fato de que tais campanhas existem há anos é inegável. A Global Voices foi um dos primeiros veículos de notícias ocidentais a expor a real extensão da trolagem on-line patrocinada pelo governo da Rússia [13]. Existe um canal anônimo no Telegram [14], um popular serviço de mensagem na Rússia, supostamente gerenciado por um funcionário de uma fábrica de trolls (quando jornalistas tentam falar com eles, o dono do canal recusa os pedidos, alegando temer pela própria segurança). Chamado “Confessions of a Kremlinbot” ou, em tradução livre “Confissões de um robô do Kremlin”, o suposto troll postou em 26 de março:

Да, ребят, нас реально заставляют писать комменты в поддержку правительства по ситуации в Кемерово.

Смещаем вину на отдельных личностей: застройщиков, администрацию, охрану.
Перекрываем настроения против власти. “Причем тут Путин? Он же не может всё контролировать!”
Это главная цель. Параллельно хвалим МЧС, пожарных, очевидцев, кто помогал, выражаем соболезнования.

Я не знаю, зачем им это всё, но ничего более омерзительного ещё не было.

Sim, pessoal, eles estão nos forçando a escrever comentários de apoio ao governo sobre o acidente em Kemerovo.
Estamos jogando a culpa em várias pessoas: funcionários da construção, administração, guardas de segurança.
Estamos neutralizando a atitude antigoverno: “O que Putin tem a ver com isso? Ele não consegue controlar tudo!”
Este é o nosso principal objetivo. Ao mesmo tempo, estamos elogiando o Ministério de Situações Emergenciais, os bombeiros, as testemunhas que ofereceram ajuda, e estamos dando nossas condolências.
Eu não sei por que eles precisam de tudo isso, mas tem sido a coisa mais macabra que já fizemos.

Alguns funcionários do governo continuam a jogar os manifestantes mais destacados na lama, chamando-os de opositores e insistindo que se envolveram contra a vontade dos habitantes locais. Em 28 de março, o dia nacional oficial de luto, Vladimir Chernov, vice-governador da região mineradora de Kuzbass, disse à agência estatal RIA Novosti:

Мы делаем выводы, что это была четкая, спланированная акция, направленная на дискредитацию власти… Очень много было “подогретой молодежи”… Люди присутствовали, совсем не понимая, что они там делают.

Nós chegamos à conclusão que isso [a manifestação em Kemerovo, na segunda-feira, 26 de março] foi uma ação pontual e planejada com o objetivo de desacreditar as autoridades. Havia uma juventude muito “acalorada”. Pessoas estavam presentes sem saber bem o que estavam fazendo ali.

As trolagens refletem este sentimento, culpando o incêndio e os protestos que se seguiram, a agentes da Ucrânia, Reino Unido e a serviços de segurança ocidentais, com o objetivo de impedir a posse de Vladimir Putin em maio.

A visão ucraniana pode ter algum sentido: segundo parece [15], os boatos de necrotérios em Kemerovo com mais corpos queimados que os 64 oficialmente declarados foram deliberadamente alimentados por Dmitry Volnov. O famoso piadista ucraniano ligou para vários hospitais em Kemerovo, onde se apresentou como um socorrista do acidente, e pediu que preparassem macas e suprimentos para acomodar ao menos 300 cadáveres.

Boatos logo se espalharam nas redes sociais russas, com inúmeros usuários compartilhando capturas de telas do Whatsapp e de outros aplicativos de mensagens que citavam a contagem de mais de 300 corpos de uma “fonte confiável em Kemerovo”. Um desses posts na plataforma de mídia Yandex.Zen [16], já tem mais de 113.000 visualizações.

O trágico incidente em Kemerovo expôs não só a insensibilidade dos oficiais russos ao sofrimento popular e à falta de habilidade para gerenciar crises, como também à suscetibilidade da sociedade aos boatos on-line, tanto os patrocinados pelo governo como os externos.