Damasco: os perigos de demonstrar solidariedade à Ghouta Oriental

‘Ghouta’, pintura por Randa Maddah. Usada sob permissão. Fonte: Women Now.

Este artigo traz uma série de depoimentos de residentes em Damasco. Depoimentos de uma enfermeira e de um dentista de Ghouta Oriental (localizada nos arredores de Damasco) já haviam sido publicados em 20 de fevereiro e 4 de março de 2018, respectivamente, pelo coletivo Act For Ghouta.

Controlada por rebeldes contrários ao regime, Ghouta Oriental está sitiada pelo governo sírio e seus aliados desde o final de 2013. Porém, nas últimas semanas, a violência aumentou de forma drástica. Mais de 120 pessoas foram mortas entre 6 e 8 de fevereiro, e outros 110 morreram em 19 do mesmo mês. Desde 18 de fevereiro, o número de mortos ultrapassou 650 pessoas, sendo pelo menos 150 crianças. A infraestrutura civil também foi seriamente danificada, com mais de 25 hospitais e centros de saúde atingidos, alguns mais de uma vez em quatro dias.

Os desdobramentos da catástrofe humanitária em Ghouta Oriental continuam. Agora, as forças sírias e russas estão avançando em uma operação militar contra o enclave rebelde sitiado pelo governo sírio desde 2013.

Há relatos de 650 mortes desde fevereiro de 2018. Esse número continua a subir entre os incessantes bombardeios terrestres e aéreos, e danos massivos à infraestrutura. Imagens terríveis de dentro de Ghouta Oriental chegam rapidamente e em quantidade, oferecendo uma pequena amostra da gravidade da situação e do sofrimento das pessoas que vivem ali.

Nas mídias sociais, apoiadores do presidente Bashar al-Assad fazem apelos para que o exército sírio suspenda os ataques de mísseis à capital Damasco, referindo-se aos projéteis lançados pelos rebeldes em Ghouta Oriental. O número de ataques aumentou consideravelmente desde o início da implacável ofensiva do governo.

A mídia estatal síria exibiu entrevistas com pessoas nas ruas de Damasco revoltadas com os frequentes ataques de mísseis atingindo sua cidade e culpando os rebeldes de Ghouta Oriental. Elas apelam para que o governo “elimine os ataques rebeldes”.

O regime despótico e os onipresentes agentes de segurança em Damasco tornam quase impossível avaliar a dimensão da oposição à ofensiva de Ghouta. Apesar de difíceis de encontrar, muitas vozes, ainda que abafadas, se insurgiram. A maioria permanece em silêncio, pois o regime tem a vantagem militar.

Salam (nome fictício), mãe de duas crianças e moradora de Damasco, conta à Global Voices que seu filho está desenvolvendo uma fobia de viver sob perigo constante:

My two year old son cries hysterically and clings fast to me when a warplane flies overhead or when an explosion occurs…He has developed a phobia.

Meu filho de dois anos chora histericamente e se agarra a mim quando um avião militar sobrevoa nossa área ou quando ocorre uma explosão… Ele desenvolveu uma fobia.

Ela acrescenta que a vida ficou mais difícil em Damasco por causa dos mísseis rebeldes, e que ela não pode imaginar como as coisas são em Ghouta:

Since the Ghouta operation began, we have been hearing explosions of unusual intensity…the passing of a plane overhead makes buildings shake. It blows my mind to imagine how mothers in Ghouta are coping. If I were there, I would have gone berserk. I am a mother and I understand how mothers feel. I have been watching videos and following Facebook posts from Ghouta mothers. It is impossible for me to not empathize.

Rockets and shells have disrupted life here in Damascus. In some neighborhoods people are no longer sending their children to schools. Just imagine how life is there. Civilians on both sides are paying the price. This madness has got to stop.

Desde que a operação em Ghouta começou, temos escutado explosões de intensidade incomum… Os prédios tremem quando aviões sobrevoam a área. Não consigo imaginar como as mães em Ghouta estão lidando com a situação. Se eu estivesse lá, estaria furiosa. Sou mãe e entendo como mães se sentem. Assisto aos vídeos e sigo postagens de mães de Ghouta no Facebook. É impossível para mim não sentir empatia.

Mísseis e bombas perturbaram a vida aqui em Damasco. Em alguns bairros as pessoas não estão mais levando seus filhos à escola. Imagine como é a vida lá. Civis em ambos os lados estão pagando o preço. Essa loucura tem de parar.

Ahmad (nome fictício), funcionário público originário de Harasta em Ghouta Oriental, partiu para Damasco com sua família assim que a ofensiva do governo contra os protestos começou em sua cidade natal. Ele passa a maior parte do tempo colado no laptop, acompanhando os acontecimentos em Ghouta. Agora teme pelas vidas dos seus parentes e também sofre com medo de perseguição no trabalho em Damasco:

I have relatives and friends in Eastern Ghouta. They keep posting updates of their hellish conditions on social media. I have already lost three friends since the operation started.

Employees from Ghouta are closely monitored. You have to be careful to not even show sympathy. You have to weigh your words carefully.

Tenho amigos e parentes em Ghouta Oriental. Eles postam atualizações de suas condições de vida infernais nas redes sociais. Já perdi três amigos desde o início da operação.

Funcionários que vieram de Ghouta são monitorados de perto. Você tem de ser cuidadoso e não pode nem demonstrar solidariedade. Você tem de escolher suas palavras com muito critério.

Quando perguntado sobre as possíveis consequências, Ahmad diz:

You risk being suspected of having links with ‘terrorists’, you can lose your job if someone tips you off. You risk even detention. Generally speaking, there is a tacit understanding that silence in the safest thing you can do.

Você corre o risco de ser suspeito de ter conexão com “terroristas”, pode perder o emprego se alguém o denunciar. Você corre risco até de prisão. De forma geral, há um entendimento tácito de que permanecer em silêncio é o mais seguro.

Ele disse não saber como reagir quando colegas de trabalho pedem para “varrer Ghouta do mapa”:

When co-workers complain about shells and rocket attacks and call for ‘wiping Ghouta out’ in retaliation for the rockets, all you can do is grin and bear it. I feel deeply embittered. I have friends and relatives there. I have my house which I am sure is a big pile of rubble now. I have my childhood and youth memories there.

Deep down I know I am a coward. But there is nothing we can do. They have military might on their side. Even the UN [United Nations] and international community have proved inept. We are trapped in our helplessness.

Quando colegas reclamam dos mísseis e ataques de bombas e pedem para “varrer Ghouta do mapa” em retaliação aos bombardeios, tudo o que se pode fazer é sorrir e aguentar. Me sinto muito amargurado. Tenho amigos e parentes lá. Tenho uma casa, que já deve ter se tornado uma grande pilha de escombros. Tenho lembranças da infância e da juventude lá.

No fundo, sei que sou covarde. Mas não há nada que possamos fazer. Eles têm a força militar do lado deles. Até mesmo a ONU [Organização das Nações Unidas] e a comunidade internacional se provaram ineptas. Somos reféns do nosso desamparo.

Omar (nome fictício), estudante universitário que vive no distrito de Qaboun, perto de Damasco, reitera esse pensamento:

Back in 2006, I vividly remember when we received a Lebanese family who fled the Israeli war in our house in Qaboun. I remember my brothers engaging in solidarity stands and fundraising for the people of Gaza during Israeli operations. With Ghouta, we are denied the luxury of showing solidarity. I envy people from across the globe who can join protests and shout at the top of their voices in solidarity with Ghouta.

Lembro claramente quando, em 2006, recebemos uma família libanesa fugindo da guerra do Líbano em nossa casa em Qaboun. Lembro dos meus irmãos demonstrando solidariedade com manifestações e arrecadação de fundos para as pessoas de Gaza durante as ofensivas de Israel. Com Ghouta, somos negados o luxo de mostrar solidariedade. Invejo as pessoas ao redor do mundo que podem participar de protestos e gritar a plenos pulmões em solidariedade à Ghouta.

Omar diz que criou um perfil falso no Facebook para participar de campanhas on-line e compartilhar relatos dos residentes de Ghouta. Ativo nas redes sociais, Omar diz que traduz relatos, postagens e vídeos de pessoas sitiadas na esperança de “estimular a opinião pública a agir”.

Whenever you turn a blind eye to this tragedy, a boom brings it back to your senses. There is no ignoring it…Geographical vicinity, kinship and humanity dictates it.

Sempre que fazemos vista grossa para essa tragédia, um novo acontecimento a traz de volta para o centro do debate. Não há como ignorar… Proximidade geográfica, afinidade e humanidade determinam isso.

 

Inicie uma conversa

Colaboradores, favor realizar Entrar »

Por uma boa conversa...

  • Por favor, trate as outras pessoas com respeito. Trate como deseja ser tratado. Comentários que contenham mensagens de ódio, linguagem inadequada ou ataques pessoais não serão aprovados. Seja razoável.