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Desenvolvendo a resiliência: resposta à violência virtual no Sri Lanka

Categorias: Sul da Ásia, Sri Lanka (Ceilão), Ativismo Digital, Direitos Humanos, Fotografia, Liberdade de Expressão, Mídia Cidadã, Mulheres e Gênero, Protesto, Tecnologia
Image via Groundviews

Imagem de Deshan Tennekoon, via Groundviews

Este post, escrito por Raisa Wickrematunge [1], com fotos de Deshan Tennekoon, foi publicado originalmente no Groundviews, um premiado site de jornalismo cidadão do Sri Lanka. A versão editada, publicada abaixo, faz parte de um acordo de compartilhamento de conteúdo com a Global Voices.

Ela faz uma pose para a câmera, mãos na cintura, parece determinada, seu olhar vidrado em um ponto distante. Observando-a, o grupo ri e grita palavras de incentivo. O ambiente é leve e acolhedor. No entanto, apenas cinco minutos depois, uma das garotas que está sendo fotografada fala sobre a ansiedade que sente toda vez que posta suas fotos on-line.

Deshani Dharmadasa diz:

Sinto como se estivessem observando tudo que você faz. Até o que você veste… manda uma mensagem. Isso só contribui para minha ansiedade.

O Groundviews entrevistou um grupo de mulheres do Sri Lanka, incluindo a executiva de marketing, Deshani Dharmadasa, que foi alvo de ataques on-line, muitas vezes com comentários maldosos em relação à aparência.

O termo “assédio virtual” tem muitas definições. O Instituto Europeu para a Igualdade de Gênero [2] evita defini-lo, afirmando que não pode adotar nenhuma das definições aceitas. Pesquisas recentes do Centro de Pesquisas Pew [3] demostraram que, com frequência, os norte-americanos ficam divididos sobre o que constitui o assédio on-line — se o compartilhamento de mensagens privadas ou o envio de mensagens indelicadas.

A Associação para o Progresso das Comunicações (APC) [4] tem focado neste assunto, já que se relaciona com a violência contra a mulher. A APC luta para que o assédio virtual seja reconhecido como um componente da violência de gênero, porque afeta a mulher também no mundo real [2].

No entanto, durante a conversa com o pequeno grupo, outra coincidência surgiu – cada pessoa encontrou a sua maneira de enfrentar e, quando possível, lutar contra o ódio direcionado a ela. Algumas usam o humor, outras o confronto direto. Dharmadasa, por exemplo, periodicamente posta fotos dos comentários indesejados que recebe no Facebook e no Instagram. Mesmo com os filtros de privacidade acionados, ela afirma que recebe uma média de uma a três mensagens por semana. Tomando cuidado para ocultar a identidade quando posta, às vezes manda mensagens privadas para repreender seus agressores.

Dharmadasa explica:

I often tell them I have a brother and I would be ashamed if he treated and spoke about women the way they do. I want to try and make them think about the comments they post.

Muitas vezes digo que tenho um irmão e que ficaria envergonhada se ele tratasse e falasse sobre as mulheres como eles fazem. Quero tentar fazer com que pensem nos comentários que postam.

Dharmadasa nunca recebeu uma resposta para as mensagens que manda.

[1]

“Não diga às pessoas que acha engraçado ou que é ‘coisa de homem’, porque tornará isso uma coisa normal”. Imagem de Deshan Tennekoon, via Groundviews

No entanto, Dharmadasa é sincera sobre sua própria cumplicidade: no passado, ela costumava rir desses comentários, com medo de ser taxada de mal-humorada ou geniosa:

Don’t make the same mistake I did. Don’t stay silent, she says.

‘Não cometa os mesmos erros que eu. Não se cale’, diz ela.

No evento Lanka Comic Con de 2017 [5], meninas cosplayers [6] (“caracterizadas como seus personagens favoritos”) foram ridicularizadas, seus corpos foram alvo de piadas e até fotos do evento foram usadas para fazer memes que viralizaram [7]. Para as mulheres e meninas que participaram caracterizadas, a repercussão negativa foi um grande choque.

No início, Amaya Suriyapperuma não sabia dos memes – seus amigos tentaram esconder, já que era seu aniversário. Mas ela ficou surpresa com a maldade, quando finalmente os viu. Amaya escolheu se vestir de Mulher Maravilha – muitos disseram que ela era “magra demais”.

[1]

“É importante lembrar por que você faz cosplay, e também conhecer a si mesma. Isso ajuda quando você é criticada”. Imagem de Deshan Tennekoon, via Groundviews.

Como estudante de Psicologia, Amaya tentou analisar o significado por trás dos comentários.

“My first question was, ‘Why would anyone want to do this?’ It could be a lack of self-esteem. Maybe they don’t have a platform to express themselves.”

Minha primeira pergunta foi: ‘por que alguém ia querer fazer isso?’ Poderia ser falta de autoestima. Talvez eles não tenham uma plataforma para se expressar.

Amaya ainda salientou que o cosplay é uma coisa relativamente nova no Sri Lanka.

No fim das contas, Amaya se viu inesperadamente em um pedestal. Membros do Geek Club de Sri Lanka [8] (que também são os organizadores do evento Lanka Comic Con) uniram-se e denunciaram algumas das páginas do Facebook. Uma pessoa tuitou uma foto dela [9] e marcou a diretora do filme Mulher Maravilha, Patty Jenkins, e a atriz Gal Gadot, que interpretou a personagem principal. Ambas retuitaram [10] as fotos e expressaram [11] seu apoio.

Para Amaya, isso foi inacreditável. Pessoas disseram que ela “achava que era a Mulher Maravilha” e só estava atrás de seus 15 minutos de fama. Ela começou a se perguntar se realmente merecia tanto apoio. Uma aula da faculdade que tratava de memes degradantes foi inesperadamente angustiante.

I suddenly realised… hey, this happened to me.

De repente eu percebi… ei, isso aconteceu comigo.

Por fim, Amaya lembrou por que ela gostava de cosplay.

It’s important to remember why you did it, and to know yourself too. That helps a lot when people criticise.

É importante lembrar por que você faz isso e conhecer a si mesma. Ajuda muito quando se recebe críticas.

Amaya escolheu o cosplay como uma maneira de enfrentar dificuldades relacionadas à ansiedade e depressão e, ao mesmo tempo, homenagear seus personagens favoritos. Os comentários e memes acabaram fortalecendo sua resiliência, afirmou.

Ela tem mais uma mensagem:

If you have anything to say that could cause harm to others, to their mental health or self esteem…don’t say it!

‘Se você tem algo a dizer que pode prejudicar outra pessoa, sua saúde mental ou autoestima… não diga!’

Assim como Amaya, a escritora que fez cosplay de Supergirl, Shamindri De Sayrah, também foi alvo de comentários maldosos, que ridicularizavam seu corpo. Depois do tuíte de apoio de Gal Gadot, muitos evitaram atacar Amaya, mas, infelizmente, continuaram perseguindo outras participantes do evento.

Shamindri disse que ficou indignada quando viu os primeiros memes sobre Amaya:

I couldn’t help but wonder, what’s to stop them from targeting me as well? We cosplayed our favourite characters because we love them. If you look in the mirror and think, ‘I’m beautiful, and I like the way I look,’ nothing the bullies say can ever get to you.

Eu pensei: ‘O que os impede de vir atrás de mim também?’ Fazemos cosplay de nossos personagens favoritos porque os amamos. Se você olha no espelho e pensa, ‘Eu sou bonita e gosto da minha aparência’, nada que os valentões falem pode atingir você.

[1]

“Se você pensa, ‘Eu sou bonita e gosto da minha aparência’, nada que os valentões falem pode atingir você”. Imagem de Deshan Tennekoon, via GroundViews.

A estudante de Direito, Humaiza Thassim, também fez cosplay de Supergirl. Ela descobriu que suas fotos estavam sendo compartilhadas no segundo dia da Comic Con. Sem saber dos comentários, ela estava fantasiada naquele dia. Humaiza falou sobre a humilhação ao descobrir que suas fotos estavam sendo compartilhadas e ridicularizadas on-line, sem o seu conhecimento.

[1]

“Pense se o que diz vai prejudicar alguém”. Imagem de Deshan Tennekoon, via Groundviews.

Sendo muçulmana, Humaiza recebeu críticas adicionais. Vários membros da sua comunidade disseram que ela estava agindo de maneira “anti-islâmica”.

Humaiza disse:

“Just because we have a fundamental right to freedom of expression doesn’t mean you can just say whatever you want. Just think about whether what you’re saying will harm that person, and whether you even know this person. That applies not just to cyber-bullying but offline as well.”

Só porque temos o direito fundamental à liberdade de expressão, não quer dizer que você pode falar o que bem entender. Apenas pense se o que diz vai prejudicar alguém, e se você conhece a pessoa. Isso não se aplica apenas ao ambiente virtual, mas à vida real também.

A artista Vicky Shahjahan [12] enfrenta um tipo diferente de assédio. Identificada como andrógina, Vicky, inicialmente, enfrentou resistência da comunidade conservadora de Slave Island, que nunca tinha visto ou interagido com uma pessoa andrógina antes.

[1]

“Seja forte. Você sempre vai encontrar pessoas prontas a julgar e questionar você. É preciso estar preparada.”

Muitos membros da comunidade acharam que a expressão de identidade de gênero de Vicky era um sinal claro de promiscuidade. Qualquer interação com um amigo ou amiga era vista como prova disso. No entanto, Vicky respondeu com humor a tais comentários. Por meio de constante interação, principalmente através da arte, Vicky conseguiu mudar essa percepção. Apesar do ódio continuar, vizinhos e membros da comunidade agora defendem Vicky com mais frequência.

Isso não quer dizer que Vicky não encontre o mesmo ódio on-line. O uso de expressões de gênero como insulto é algo que interessa muito a Vicky e sobre o que ela frequentemente se manifesta.

Para aqueles que possam estar sofrendo com a expressão de identidade de gênero, Vicky encoraja para que sejam fortes.

Aonde quer que você vá, encontrará pessoas prontas a julgar e questionar você… é preciso estar preparada.

Os clamores por resiliência refletem um problema muito mais profundo – a falta de locais adequados para procurar ajuda quando comentários ofensivos, imagens ou vídeos são postados on-line, sem consentimento. Como Amaya destacou, as cosplayers tiveram sorte de ter o apoio dos membros do Geek Club do Sri Lanka, que se uniram para denunciar em massa as páginas e dar apoio moral. Uma mulher ou menina comum, que tivesse as fotos compartilhadas, sem o seu consentimento, não teria a mesma rede de apoio. Além disso, ela teria oportunidades limitadas para buscar compensação. A lei sobre difamação existente no Sri Lanka não cobre adequadamente as redes sociais, e as autoridades responsáveis não respondem, ou demoram demais para responder às denúncias.

Nem mesmo o mecanismo de denúncia do Facebook funciona, devido a restrições de idiomas. Para as cosplayers, foi necessário que os fotógrafos oficiais do evento denunciassem que suas imagens haviam sido roubadas para que o Facebook retirasse os memes ofensivos do ar – denunciar o conteúdo não funcionou, já que muitos dos memes estavam em cingalês, a língua mais falada no Sri Lanka, que não usa o alfabeto latino.

Amaya disse no fim de nossa entrevista:

You have to fight for yourself. Sri Lanka’s law governing online harassment is not strong in any case, and it doesn’t cover social media, so there’s no point [in pursuing legal action].

É preciso lutar por si mesma. A lei do Sri Lanka contra o assédio on-line não é forte em nenhum caso e não cobre redes sociais, por isso não tem sentido [buscar os meios legais].

“Isso é triste”, ela acrescenta, em voz baixa.

As histórias de mulheres e meninas que têm fotos vazadas ou que são ridicularizadas on-line se repetem. Muitas vezes, elas têm que contar com seus próprios recursos e contatos para conseguir qualquer tipo de resposta ou ação. As questões que o grupo enfrenta, discutidas aqui, refletem a pesquisa que estamos fazendo [13] sobre violência contra a mulher através da tecnologia. Esses incidentes não são isolados e formam um grande universo de misoginia e sexismo on-line, quando falamos com e sobre mulheres no Sri Lanka.

Se você quer denunciar um episódio de assédio/intimidação on-line, leia este breve guia do Bakamoono [14] para saber como agir.