A campanha #MeToo (no Brasil, #EuTambém), que encoraja mulheres a relatarem suas experiências de assédio e agressão sexual, tem estimulado acusações nos âmbitos político, profissional e geográfico.
Uma tendência especialmente importante e controversa no momento é a de pessoas que criam listas públicas de acusados de perpetrar esse tipo de comportamento sexual.
Em 24 de outubro de 2017, Raya Sarkar, natural de Singapura e estudante de Direito nos EUA, publicou uma lista desse tipo no Facebook. A lista apresenta os nomes de 58 acadêmicos de 29 universidades, a maioria na Índia, acusados por alunas de assédio ou violência sexual.
Sarkar, que faz questão de se considerar como parte de um grupo, compilou a lista através de colegas e redes de conhecidos, e coletou evidência de cada vítima para verificar suas alegações.
A lista publicada tem sido vista por muitos como uma tentativa de revelar o problema e falar abertamente sobre assédio sexual na área acadêmica da Índia. Numa entrevista para a BBC, Raya Sarkar explicou que essa iniciativa visa alertar amigos e colegas sobre pessoas que tenham história de má conduta sexual. O objetivo, acrescentou Raya, foi ajudar as pessoas a se sentirem seguras.
Raya Sarkar disse ao site BuzzFeed que a lista foi baseada em evidência coletada a partir de conversas particulares com cada vítima – isso inclui mensagens, capturas de tela e testemunhos. Sarkar não publicou nenhuma dessas provas, pois manter a confidencialidade é imperativo até que as vítimas escolham vir a público com suas acusações. Ainda assim, pelo Facebook, Sarkar encorajou as vítimas a procurarem a polícia e outras autoridades relevantes:
If you are a victim of sexual harassment go file an FIR (police report). No internal committee nonsense. Go straight to court. Internal committees will exhaust you harder than courts, speaking from 1st hand experience.
Se você é vítima de assédio sexual, faça um boletim de ocorrência na polícia. Nada dessa bobagem de comitês internos. Vá direto à Justiça. Comitês internos irão esgotá-la mais que a Justiça, e falo por experiência própria.
Uma vez que assédio sexual é crime sujeito à penalidade na Índia, uma queixa pode ser prestada contra o assediador.
Enquanto muitos viram esse movimento de Raya Sarkar como algo corajoso, outros foram céticos acerca da tática. Deepanjana Pal escreveu no NewsLaundry:
Viewed from a legal perspective, Sarkar’s list inhabits an ethical danger zone. The complainants are anonymous, the charges are vague and the only definite detail is the name of the accused.
Visto sob uma ótica legal, a lista de Sarkar está numa zona ética perigosa. As denunciantes são anônimas, as acusações são vagas e o único detalhe claro é o nome do acusado.
Num artigo para o Daily O, Sumit Mitra explicou que o principal fator é que parece haver uma falta de responsabilidade legal, uma vez que as vítimas de assédio não apareceram para compartilhar suas histórias.
Mas muitos no Twitter apontaram que é difícil para as vítimas se apresentarem sem que manchem sua própria reputação ou se tornem vulneráveis a outras ameaças.
If we were in a world where being on an anonymous list did anything to your reputation or career, anonymous lists wouldn't even be needed. — Warlizard from the Warlizard gaming forums. (@AroonDeep) November 2, 2017
Se estivéssemos num mundo onde constar em uma lista anônima fizesse qualquer coisa com a sua reputação ou carreira, listas anônimas nem precisariam existir.
Horrible irony alert: Raya Sarkar faces death, rape threats after sexual predators’ list takes academia by storm https://t.co/1faZfa4uNH
— Zeynep Arsel (@zeyneparsel) November 6, 2017
Alerta de ironia horrível: Raya Sarkar enfrenta ameaças de morte e de estupro após lista de predadores sexuais causar um terremoto no meio acadêmico. https://t.co/1faZfa4uNH
A lista também recebeu opiniões divergentes de feministas. Um grupo de 12 feministas publicou uma declaração no blog Kafila Online, na qual apelaram àquelas que contribuíram para a lista que retirem suas acusações ou acionem propriamente a lei e a Justiça. Elas repetiram o argumento de especialistas em Direito que expressaram preocupação com a falta de evidências:
It worries us that anybody can be named anonymously, with lack of answerability. Where there are genuine complaints, there are institutions and procedures, which we should utilize. We too know the process is harsh and often tilted against the complainant. We remain committed to strengthening these processes. At the same time, abiding by the principles of natural justice, we remain committed to due process, which is fair and just.
This manner of naming can delegitimize the long struggle against sexual harassment, and make our task as feminists more difficult.
Nos preocupa que qualquer pessoa possa ser acusada de forma anônima sem que haja responsabilidade legal. Onde existem acusações genuínas, há instituições e procedimentos que devemos utilizar. Também sabemos que o processo é duro e comumente se vira contra quem acusa. Permanecemos comprometidas a fortalecer esses processos. Ao mesmo tempo, respeitando os princípios da justiça natural, continuamos comprometidas com o devido processo legal, que é justo e equitativo.
Essa forma de acusação pode deslegitimar a longa luta contra o assédio sexual e tornar nosso objetivo enquanto feministas mais difícil.
Respostas à carta refletiram preocupação sobre o sistema do devido processo legal que o grupo Kafila referenciou. Um comentarista, identificado como “Officious Fool”, escreveu:
…what incentive does someone, who has nothing but her first-hand experience to back her statement, have to speak up against these people who wield such immense power in academic circles? The intent to strengthen redressal mechanisms need not delegitimise personal accounts. Please don’t discourage people from speaking out. And please don’t say “due process” if you can’t vouch for the protection of those who do come forward.
… que incentivo alguém tem, alguém que não possui nada a não ser sua experiência em primeira mão respaldando seu testemunho, para se manifestar contra essas pessoas que exercem um imenso poder nos círculos acadêmicos? A intenção de fortalecer os mecanismos de reparação legal não precisa deslegitimar relatos pessoais. Por favor, não desencorajem as pessoas de se pronunciarem. E por favor, não digam ‘devido processo legal’ se não podem garantir proteção àqueles que realmente se apresentam.
A lista e suas respostas também tocam em outros problemas inerentes à sociedade e cultura indiana. A maioria dos professores da lista vem de castas altas do sistema de casta Hindu. Isso demonstra um aspecto muitas vezes desconhecido sobre esse povo: a hegemonia prevalente da casta superior na sociedade indiana.
Sudhamshu Mitra postou no Facebook uma mensagem de apoio à iniciativa de Sarkar. Mitra, que é engenheiro em Bangalore, expressou uma dificuldade inicial com a lista. Mas depois, ponderou que a tática de Sarkar foi habilidosa frente às divisões de classe e gênero na Índia.
…in my experience, upper caste men(including me), who talk about feminist ideals, or who have gained immense academic stature, can easily find a way out of the current justice system. Because the entire justice system itself is aligned towards keeping patriarchy and caste system intact.
For instance, if my name was on the list, or if someone accused me of sexual harassment, I doubt many would believe that because of the conversations I engage in with respect to masculinity and feminism. That's how much power I possess. An “upper” caste man proclaiming progressive ideas is put on a pedestal in our society. But others who constantly engage in politics of daily lives and raise issues on inequality and oppression are not even listened to.
… na minha experiência, homens de casta superior (me incluindo), que falam sobre ideais feministas ou que ganharam um imenso status acadêmico, podem se safar facilmente do sistema de justiça atual. Isso porque o sistema de justiça como um todo está alinhado a manter o patriarcado e o sistema de castas intactos.
Por exemplo, se meu nome estivesse na lista, ou se alguém tivesse me acusado de assédio sexual, duvido que muitos acreditariam, em função das conversas nas quais me envolvo sobre masculinidade e feminismo. Isso é o tanto de poder que possuo. Um homem de casta ‘superior’ proclamando ideias progressistas é colocado num pedestal em nossa sociedade. Mas outros que constantemente se engajam na política das vidas cotidianas e levantam questões de desigualdade e opressão não são nem mesmo ouvidos.
Enquanto vozes das redes sociais continuam a debater o problema, a maioria das universidades se recusaram a responder ou explicaram que irão investigar as acusações de forma independente.