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Vozes laicas em nações Bálcãs opõem-se à educação religiosa nas escolas públicas

Categorias: Europa Oriental e Central, Croácia, Macedônia, Sérvia, Ativismo Digital, Direitos Humanos, Educação, Liberdade de Expressão, Mídia Cidadã, Política, Religião

Capas de livros didáticos dos Bálcãs. Da esquerda para a direita: “Com Cristo até o fim da vida” (Croácia), “Catecismo Ortodoxo” (Sérvia), Ética das Religiões na Macedônia e Albânia (Macedônia), Conhecendo as Religiões (Macedônia).

Humanistas e ativistas das ex-repúblicas iugoslavas alertam que a expansão da educação religiosa em escolas públicas ameaça enfraquecer o caráter laico nesses países.

Durante o período do socialismo (1945-1990), a Iugoslávia impôs algumas limitações ao trabalho das instituições religiosas, incluindo a nacionalização das terras pertencentes às igrejas. Entretanto, o Estado tolerou e às vezes até apoiou o trabalho do setor religioso, já que a maioria dessas igrejas e comunidades islâmicas cooperaram com as autoridades comunistas. Mas a educação religiosa foi limitada às instituições religiosas, algo parecido com o conceito de escola dominicana nos Estados Unidos.

Durante o período de transição para a democracia após 1990, a influência política das instituições religiosas aumentou. A maioria das ideologias nacionalistas Bálcãs [1] tinham uma identidade religiosa particular como elemento essencial para cultivar um tipo de patriotismo mais sólido. Em parte, isso explica porque as pesquisas em estados pós-comunistas mostraram altos níveis de sentimento religioso entre as pessoas.

Com exceção de Eslovênia, Albânia e Montenegro, os países Bálcãs introduziram algum tipo de educação religiosa no currículo escolar. Esse é um assunto controverso e às vezes gera debates acalorados na mídia social na Sérvia, Croácia, Macedônia e Bósnia e Herzegovina.

Inicialmente, o termo para educação religiosa na Croácia, Sérvia e Macedônia (vjeronauk, veronauka e веронаука respectivamente) foi derivado da combinação da palavra “fé” (vjera ou vera) com a palavra nauk ou nauka, que antigamente era usada com o sentido de “aprendizagem”. Mas na linguagem contemporânea primordialmente significa “ciência”. Assim, ela pode ser traduzida literalmente como “ciência religiosa”. Os críticos alegam que isso gera confusão na compreensão das diferenças entre o ensino religioso e as disciplinas científicas modernas, como física ou biologia.

Por que eles chamam de ‘ciência religiosa’ se isso não é uma ciência mas uma matéria sobre crenças? Deveria ser chamada de ‘crenças religiosas’.

Educação religiosa na Croácia

A Croácia foi a primeira ex-república iugoslava a introduzir a educação religiosa nas escolas públicas durante a década de 1990. As aulas promovem os ensinamentos da Igreja Católica Romana, a religião majoritária no país.

A matéria é optativa, mas não há uma alternativa: as crianças cujos pais definiram que elas não farão a matéria geralmente têm que esperar nos corredores vazios ou na biblioteca da escola durante o período da aula. Em alguns casos, devido à pressão social, os filhos de ateus, cristãos ortodoxos ou muçulmanos comparecem à aula e a várias atividades ligadas à religião, como as atividades natalinas.

A ONG croata Centro para a Coragem Civil [3] exigiu publicamente reformas relacionadas a essa disciplina. O grupo explicou porque acha que alguns aspectos da educação religiosa nas escolas públicas não são úteis para as crianças. O comunicado da ONG enviado para o Global Voices por e-mail diz o seguinte:

The biggest problem of such teachings is reflected in the expansion of hatred and intolerance toward others and toward those who are different – from the attitude toward homosexuals (they are likened to pedophiles), people of other nationalities, other religions, to the attitude towards unbelievers.

For example, in the textbook “With Christ through Life” for the 8th grade, young believers (about 86% of all primary school children) are taught that atheists are people brought up without God and therefore are willing to create something (horrific) like the Auschwitz (despite the fact that Auschwitz was conceptualized by those brought up with the idea that God exists), that atheists are absolutely unacceptable, that they are egoistic fools whose number should be gradually reduced through the imposition of Christian belief, the so-called “civilization of love”.

O maior problema desse tipo de ensino reflete no aumento do ódio e intolerância com os outros e com aqueles que são diferentes, desde o comportamento em relação aos homossexuais (são comparados a pedófilos), pessoas de outras nacionalidades e religiões, até mesmo com os descrentes.

Por exemplo, no livro escolar ‘Com Cristo até o fim da vida’ para a 8ª série, jovens evangélicos (cerca de 86% de todas as crianças da escola primária) aprendem que ateus são pessoas criadas sem Deus e, portanto, estão dispostos a criar algo (horrendo) como Auschwitz (apesar de que Auschwitz foi conceitualizado por aqueles que foram educados com a ideia de que Deus existe). De acordo com o que é ensinado, os ateus são absolutamente inaceitáveis. Eles são idiotas egoístas e seus adeptos devem ser gradualmente reduzidos através da imposição da crença cristã, a denominada ‘civilização do amor’.

Auschwitz [4] foi parte de uma rede de campos de concentração que nazistas e fascistas usaram durante a Segunda Guerra Mundial para exterminar as populações “indesejadas” na Europa, como judeus, ciganos, eslavos, além de opositores políticos, como pessoas ligadas ao movimento LGBT e indivíduos com deficiências. Registros históricos mostram que a maioria dos membros desses regimes alegaram publicamente que pertenciam a algumas comunidades religiosas e às vezes até recebiam apoio declarado de alguns padres.

O Centro para a Coragem Civil publicou trechos do livro didático em sua página no Facebook [5], incluindo traduções para o inglês das alegações controversas.

[6]

Lição sobre ateísmo do livro didático da Croácia sobre educação religiosa, ilustrada com a pintura “O Grito” [7] de Edvard Munch, com comentários feitos pelo Centro para a Coragem Civil. Clique na imagem para ampliar.

[8]

Segunda página da lição sobre ateísmo do livro didático de educação religiosa croata, ilustrada com a pintura “Ansiedade” [9] de Edvard Munch, com comentários feitos pelo Centro para a Coragem Civil. Clique na imagem para ampliar.

A ONG apresentou uma reclamação antidiscriminação às autoridades competentes, mas somente a ouvidoria para assuntos vinculados às crianças reconheceu o problema e reportou ao Ministério da Educação e a Conferência dos Bispos da Croácia há três anos. Porém, isso não resultou em nenhuma reforma do livro didático ou do currículo.

A atual ministra da Educação e Ciência da República da Croácia, Blaženka Divjak [10], que assumiu a função em junho de 2017, declarou em sua última entrevista [11], publicada no dia 2 de agosto de 2017, que a questão da educação religiosa não faz parte das reformas [12] que o Ministério irá implementar. Ela disse que cabe às escolas revisar o ensino dessa matéria optativa de uma maneira que não afete negativamente os alunos e que “estimule uma atmosfera de tolerância dentro das escolas”.

A escolha da Macedônia: “Ética das Religiões”

O governo da direita que governou a Macedônia de 2006 até junho de 2017, introduziu a disciplina optativa de educação religiosa nas escolas públicas em 2008. Ela tem duas versões refletindo os ensinamentos de duas das maiores organizações religiosas no país: a Igreja Ortodoxa da Macedônia e a Comunidade Islâmica. A matéria chamada Conhecendo as Religiões foi apresentada como uma alternativa laica.

Os pais criticaram a aula de educação religiosa porque exige que os alunos declarem sua identidade religiosa, causando uma experiência traumática para as crianças que fazem parte da minoria entre seus pares.

Em 2009, o Tribunal Constitucional anulou o artigo da lei sobre educação primária que autorizava a educação religiosa por violar o caráter laico do estado. As autoridades substituíram por uma disciplina chamada Ética das Religiões, supostamente uma introdução objetiva sobre o tópico.

Todavia, pais que leram o livro da disciplina Ética das Religiões descobriram que é o mesmo livro didático das aulas repudiadas de educação religiosa e que difunde o Cristianismo Ortodoxo e lições adicionais sobre o Islamismo e o Judaísmo. Jovan Petrov percebeu [13] que em vez de proporcionar uma visão geral histórica das religiões, o livro promove doutrinação “usando uma roupa de cordeiro”.

Com uma versão do livro disponível on-line em PDF [14], Petrov identificou trechos do texto onde o nome da antiga matéria não foi substituído.

Tweet: Só uma pequena evidência. Considerem esta imagem… Isto não é uma doutrinação religiosa inflexível de 6ª série? A propósito, eles esqueceram-se de trocar a palavra “educação religiosa” com o nome da matéria :)
Texto do livro: Com a ajuda do seu professor de educação religiosa, selecione e leia alguns trechos do livro do apóstolo Lucas: Atos dos Apóstolos. Descubra quão alegres e responsáveis os apóstolos eram enquanto espalhavam a verdade evangélica sobre Cristo. Que esses sentimentos te contagiem cada vez que falar de Deus.
Imagem: Mapa da região geográfica da Macedônia com uma cruz conectando algumas cidades de relevância histórica e religiosa.

Uma busca de palavras no PDF mostra que o livro didático adotado na disciplina não menciona a existência do ateísmo em nenhum momento. Também não cita outras religiões com centenas de milhões de seguidores, como o Hinduísmo ou o Budismo, ou qualquer outra prática religiosa ou crença.

Enquanto isso, o livro didático [17] para a matéria “alternativa” Conhecendo as Religiões é escrito com uma linguagem mais objetiva, mas tem um foco similar nas três fés monoteístas que possuem seguidores na Macedônia. O termo “ateus” é mencionado uma vez no “Glossário de Termos Menos Conhecidos”, no fim do livro. Também há uma seção sobre magia como precursora das religiões, ilustrada com uma foto de um filme sobre o Harry Potter.