- Global Voices em Português - https://pt.globalvoices.org -

Bate-papo com o artista paraguaio Enrique Collar e sua busca por identidade

Categorias: América Latina, Holanda, Paraguai, Arte e Cultura, Mídia Cidadã
[1]

Enrique Collar. Fotografia de Juanma López Moreira, originalmente publicado em Kurtural, utilizada com permissão.

Esse texto é uma versão abreviada de uma entrevista com o artista paraguaio Enrique Collar publicada por Kurtural [1]  [1]na série “Artífices”. Entrevista feita por Sofía Hepner, Silvia Sánchez Di Martino e Juanma López Moreira.

Em 1964, na província paraguaia de Iguazú, Enrique Collar tinha apenas 4 ou 5 anos de idade quando sua mãe, Crescencia, estava trabalhando em Buenos Aires na Argentina, da mesma maneira que outros quase um milhão de paraguaios na época. Durante uma das visitas de Crescencia ao Paraguai, ela pretendia sair com alguns amigos e Enrique escondeu os sapatos dela como forma de protesto e para impedi-la de ir embora mais uma vez.

Em 1971 Crescencia levou o filho para morar com ela em Buenos Aires. Lá ele foi para a faculdade, onde estudou design gráfico e artes plásticas na Faculdade Manuel Belgrano enquanto trabalhava como pintor artístico. Ele começou a divulgar sua arte em Assunção do Paraguai em 1990 enquanto vivia entre Buenos Aires e Assunção. Em 1999 finalmente se estabeleceu em Assunção, onde morou até 2003. A partir daí mudou-se para Roterdam na Holanda e vive até hoje na cidade com sua esposa Mireille, sua filhas Roos e Lila e o filhote adotado Sisi.

Essa entrevista levou uma semana para ser feita e o artista compartilhou histórias e viagens. Nós viajamos de trem de Rotterdam, cidade onde mora Enrique, passamos por Utrecht, cidade que abriga pinturas famosas do pintor barroco holandês Frans Hals, até Delft, cidade natal de Jan Vermer [2]. Durante todo o tempo, íamos brincando com Enrique sobre as fases de sua vida: um Enrique mais velho, que ainda não existe, o Enrique de meia idade, que nos concedeu essa entrevista, e o Enrique jovem, personagem principal do seu passado, o pintor que ficava indo e vindo entre Buenos Aires e Assunção.

Kurtural: o jovem Enrique começou a pintar no Paraguai e na Argentina carregando o cavalete de pintura de um lado para o outro enquanto se dividia entre a escola de artes plásticas e a oficina de pintura em San Telmo, o ponto de encontro entre cidadãos comuns no Paraguai. Como isso aconteceu?

Enrique Cuellar: It was the perfect environment to recover my identity in just every way. Argentina had lost the Malvinas [3], something that made them remember that Argentina was in fact part of Latin America. Charly Garcia started hanging out with Mercedes Sosa, folk and rock and roll were merging too, and the postmodernism was gaining popularity. I honestly had no idea what was going on in the art circles in Paraguay, but I would hang out with ordinary people. That gave me a bridge with my old childhood memories – paint the Lapachito (the National tree of Paraguay), paint the wagon they'd ask me. At the beginning, I was not in tune with any of that, but somehow, it turned into my motivation to find myself again, to get back my first six years in the countryside. There was a connection with these people because most of them were, just like me, from the province. It was a conscious decision to start capturing Paraguay in my paintings, but even deeper than that, I started fantasizing with a world where I could find familiar elements such as my grandmother and other town’s iconic people.

My first production in 1989 was done this way. I had a day job as a graphic designer for publishing houses while painting in my spare time. It was during a vacation in Paraguay with my mother that I took 10 or 15 of my pieces. Once in Asuncion, I visited several galleries, I met Belmarco then [a reknown gallerist], who showed some interest on my work. My first exposition was a total success with the critics and the media. When I returned to Buenos Aires I had extra money in my pocket, but one less painting. I remember thinking: “What have I done?, I’ve sold my soul to the devil!” This feeling came from the teachings of my professors at the fine arts college in Buenos Aires. They'd never sell their work. It's like a sin for them. They say that artwork should be sacred. For me, however, I feel that working should mean making a living out of what we do, right?

Enrique Cuellar: Era o ambiente perfeito para recuperar minha identidade de todas as formas. A Argentina havia perdido a Guerra das Malvinas [3], o que fez todo mundo lembrar que a Argentina era de fato parte da America Latina. Charly Garcia começou a andar com Mercedes Sosa, folk e rock também estavam se fundindo e o pós-modernismo estava ganhando popularidade. Honestamente eu não tinha a menor ideia do que estava acontecendo no meio das artes no Paraguai, mas eu andava com pessoas comuns. Essa convivência era uma ponte entre minhas antigas memórias de infância – pintar o Lapachito (árvore nacional do Paraguai), pintar um vagão que me pediam. No começo eu não estava em sintonia com nada disso, mas de certa forma se transformou na minha motivação para ajudar a me reencontrar, recuperar meus primeiros seis anos de vida morando no interior. Havia uma ligação com essas pessoas porque a maioria delas, assim como eu, vinha da província. Começar a pintar o Paraguai nas minhas obras foi uma decisão consciente, porém mais profundamente eu comecei a fantasiar um mundo onde eu pudesse encontrar elementos familiares a mim, como minha avó e outras figuras icônicas da minha cidade.

A minha primeira criação em 1989 foi produzida assim. Eu tinha um emprego como designer gráfico para editoras durante o dia e pintava nas minhas horas vagas. Em umas férias que eu fui com minha mãe no Paraguai, levei 10 ou 15 peças minhas. Quando cheguei em Assunção visitei várias galerias e conheci Belmarco, que na época era um galerista renomado e que mostrou interesse no meu trabalho. Minha primeira exposição foi um sucesso tanto de crítica como de mídia. Quando eu retornei a Buenos Aires eu tinha um dinheiro extra mas uma pintura a menos. Pensei comigo mesmo: “o que foi que eu fiz? Eu vendi minha alma ao diabo!” Esse sentimento vinha dos meus professores na escola de artes plásticas em Buenos Aires. Eles nunca vendiam seus trabalhos. Era como pecado para eles. Eles diziam que trabalhos de arte deveriam ser sagrados. Para mim, no entanto, o sentimento era de que trabalho é ganhar a vida com o que se faz, concorda?

K: Você diz que não pinta mais sobre o Paraguai porque encerrou esse capítulo na sua vida e pagou essa dívida. Que dívida era essa? 

EC: I closed the chapter in regards to the visual arts, but I have taken my experience into audiovisual arts. About the debt, I feel that it is something that sooner or later happens to all of us who emigrate from our birth places. I feel that all human beings, especially if you have a certain amount of sensitivity, move from their birthplace due to need, or forced by circumstances, or simply to try on new adventures. However, with time, you feel the need to give something back to your place of origin. This is somehow romanticized, and Paraguayans dream of returning to that place, with building a home for their family, and give back as much as they can.

My decision to paint Paraguay was about regaining my first six years of life. All that work of a young Enrique had satisfied that need for me. I think that sensitive Latin American artists feel a need of transforming their societies in some way. After more than 200 pieces, and the movies I’ve made, I feel that my responsibility of leaving behind a legacy has been fulfilled. Now living in Europe things have changed for me once more. Here the dreams of Latin American artists are carried out in different ways. Here, needs and contexts are different, the artist has permission to be more individualistic; it is more about you as a person. When I arrived here I felt that the external need of giving had been satisfied.

EC: Eu encerrei o capítulo no que se refere às artes visuais. Sobre a dívida, acho que é algo que acontece mais cedo ou mais tarde a todos nós que imigramos da nossa terra natal. Eu sinto que todas as pessoas, especialmente se você possui um pouco de sensibilidade, vão embora de seu local de origem por força de necessidade ou circunstâncias, ou simplesmente para arriscar novas aventuras. No entanto, com o passar do tempo sentem a necessidade de dar algum retorno ao seu local de origem. Isso é um pouco romantizado e os paraguaios sonham em retornar para aquele lugar através da construção de um lar para sua família e dar o máximo de retorno possível.

Minha decisão de pintar o Paraguai foi a partir da possibilidade de recuperar os seis primeiros anos da minha vida. Todo aquele trabalho do jovem Enrique satisfez essa minha vontade. Na minha opinião, os artistas latino-americanos sensíveis sentem a necessidade de transformar suas sociedades de alguma maneira. Depois de ter pintado mais de 200 obras e feito filmes, eu sinto que minha responsabilidade de deixar um legado foi satisfeita. Agora morando na Europa as coisas mudaram novamente para mim. Aqui os sonhos são realizados de outras formas. Aqui as necessidades e contextos são diferentes, o artista tem permissão de ser mais individualista, é mais sobre você mesmo enquanto pessoa. Quando eu cheguei aqui eu senti que aquela necessidade de doar havia sido suprida.

K: Você acha que existe diferença entre a arte feita pelos artistas do Paraguai e a dos artistas dos outros países?

EC: I think you needn't think about the audience. You need to think about art history, about what's universal. The artist who paints for a specific audience, to sell, is underestimating him or herself. I paint for myself, I don't know who I paint for.

I have painted works that are unsellable for the “lapachito” and the “decorative style” way of thinking, and they were sold anyway. I have no Paraguayan works with me right now, everything was sold, even those that were impossible to sell. The audience is always open to new things. Painting for selling translates into comfort, and art is uncomfortable, you can never feel comfortable.

EC: Eu acho que não se deve pensar no público. Devermos pensar na história da arte, sobre o que é universal. O artista que pinta para um público específico, com a intenção de vender, está subestimando a si mesmo. Eu pinto para mim, eu não sei para quem estou pintando.

Eu fiz pinturas que não são vendáveis para o modo de pensar “lapachito” ou o “estilo decorativo”, no entanto elas são vendidas mesmo assim. Eu não tenho trabalhos referentes ao Paraguai comigo no momento, foi tudo vendido, até as telas que pareciam impossíveis de vender. O público sempre está aberto ao novo. Pintar para vender se traduz em conforto e a arte não é confortável, você não pode nunca se sentir confortável.

Mais detalhes sobre o trabalho e testemunho de Collar estão no vídeo criado pela Kurtural, como parte da série #Artífices (legendas em inglês disponíveis):