Feira Internacional de Damasco, tentativa do regime sírio de “embelezar” feridas da guerra?

Cartaz oficial da 59ª Feira Internacional de Damasco

A Feira Internacional anual de Damasco retornou na 59ª edição pela primeira vez desde o levante sírio em 2011. O evento foi inaugurado em 17 de agosto de 2017 e durou 10 dias, com representantes que incluíam desde a indústria têxtil até a indústria agrícola.

Segundo a mídia estatal de comunicação “SANA”, os expositores internacionais vieram de 23 países — os que o governo do presidente Bashar al-Assad considera “amigos da Síria”, como Rússia, Irã, Venezuela e China.

A feira também contou com a presença de empresas privadas de países que cortaram relações com o regime sírio, entre eles França, Alemanha e Grã-Bretanha.

Fares al-Kartally, diretor-geral do evento, disse à AFP que o retorno da feira foi possível graças à recuperação da calma e da estabilidade na maioria das regiões da Síria. Contudo, a menos de 16 quilômetros do local do evento, aconteciam combates nas zonas rebeldes dos subúrbios de Damasco de Al Hajar Al Aswad e Babbila.

Bouthaina Shaaban, conhecida porta-voz do regime, foi citada na SANA: “Estamos no começo do caminho para a reconstrução.”

Visitantes na entrada da exposição no terceiro dia da Feira Internacional de Damasco. Fonte: agência de noticias SANA, organização estatal de mídias da Síria.

Devido à intensa destruição ocorrida durante a guerra, os maiores esforços de reconstrução concentraram-se na região de Damasco. As áreas que foram sitiadas e como consequência sofreram com a falta de produtos básicos como água e eletricidade viram melhoras nos dias anteriores à exposição.

O caminho para o Aeroporto Internacional de Damasco passou por uma transformação: árvores foram plantadas e campanhas de limpeza e instalação de iluminação foram realizadas antes do evento. O aeroporto também passou por reformas, aprimoramentos em suas instalações e na segurança, de modo que agora conta com novas câmeras de vigilância, dispositivos de inspeção, telas, horários de voo e sistemas de ar-condicionado.

O chefe da Câmara da Indústria de Damasco, Samer el-Debs, disse à AP:

Esse retorno é uma indicação de que a guerra na Síria está chegando ao fim… depois de tudo o que aconteceu, de todas as sanções econômicas contra a Síria e das tentativas sistemáticas de destruir a nação, vemos que esse feira foi reaberta.

Nos dias que antecederam à exibição, a taxa de câmbio da libra síria aumentou em relação ao dólar norte-americano, o que o Centro de Investigação e Estudo de Damasco vinculou ao retorno da feira e à reentrada da Síria no mercado comercial e econômico.

“Medidas para embelezamento” tomadas pelo governo

Os sírios que não apoiam o governo de Assad consideraram a feira como um evento cínico de relações públicas.

Segundo o analista econômico sírio Abdel Nasser AlJassem, a volta da feira representa mais uma das “medidas de embelezamento” que o regime está tomando para promover uma sensação de estabilidade e mostrar que a economia, especialmente o setor industrial, está indo bem.

Mas a realidade contradiz isso, escreveu Al Jassem no Al Araby. Segundo o próprio regime, 80% das instalações industriais pararam e a Síria importa até os alimentos e bens de consumo mais básicos.

Anfiteatro recentemente construído no Centro Cultural Dummar, parte da Opera House de Damasco. Fonte: página de Facebook de Damascus Opera House.

O regime deu um grande impulso em meados deste ano para afirmar o retorno da estabilidade e a derrota do “terrorismo” no país, em um esforço de posicionar a Síria novamente no mapa econômico. O Ministério do Turismo lançou várias campanhas para incentivar viagens às cidades costeiras e a Alepo, devastada pela guerra, através de vídeos de clubes e festas na cidade. As campanhas mostram essas áreas como “seculares”, “ocidentalizadas” e glamorosas.

E o Ministério da Cultura construiu recentemente um novo anfiteatro ao ar livre no Centro Cultural Dummar em Damasco. A edificação foi feita à imagem e semelhança do famoso anfiteatro romano de Bosra e tem capacidade para 3.000 pessoas. O local será palco de vários festivais, peças, noites de ópera e concertos musicais. Os ingressos de cada evento custarão 1.000 libras sírias, o equivalente a 1,93 dólares norte-americanos na data da publicação, para atrair o maior número possível de espectadores.

Durante a cerimônia inaugural da feira, o primeiro-ministro sírio, Emad Khamis, fez um discurso de 15 minutos e anunciou uma “nova temporada de vitória”, e explicou que a reabertura da exposição demonstra que “a vontade de viver dos sírios foi e continua sendo mais forte que o terrorismo… [que] é a bandeira da vitória da vida sobre o assassinato, da honestidade sobre a traição, do certo sobre o errado e da soberania sobre a dependência”.

“Uma reconstrução pós-conflito que não aborde questões críticas… dificilmente será estável”

Os críticos veem as tentativas de reconstrução não só como uma maneira de o governo de Assad impulsionar a recuperação econômica e a reparação social, mas também como uma forma de reafirmar seu poder, recompensar aos que lhe são leais e punir a oposição.

O próprio Assad fez um discurso em 21 de agosto de 2017, quando disse que a Síria “perdeu sua melhor juventude e infraestrutura”, mas que “ganhou uma sociedade mais saudável e mais homogênea”.

Azmi Bishara, proeminente intelectual e analista político árabe, criticou a declaração de Assad por ser “hitlerista“, e a interpretou como uma confirmação por parte de Assad do genocídio e da evacuação como doutrinas centrais do regime. Bishara tuitou:

Assad: “Perdemos nossos melhores jovens e nossa infraestrutura, mas ganhamos uma sociedade mais saudável e mais homogênea”. Uma frase claramente hitlerista que prova que o genocídio e as evacuações são doutrinas oficiais do regime.

Para o escritor suíço-sírio Joseph Daher, isso representa o resultado de que a comunidade internacional priorizou a chamada guerra contra o terror. Em uma ampla análise para o site de notícias independente Syria Untold, escreveu:

Essa é a culminância do foco sobre a “guerra contra o terror” por parte dos principais atores estatais, internacionais e regionais, e o consenso de que Bashar Al-Asad continuará no poder, dois fatores que fortaleceram a confiança do ditador e da classe dominante em Damasco.

Refletindo sobre a declaração de Assad, a ativista palestina-síria Razan Ghazzawi disse:

 A “sociedade mais saudável e homogênea” de Assad está fundamentada em assassinatos sistemáticos, evacuações demográficas e destruição de bairros inteiros.

Esse é o futuro que Assad promete às pessoas na Síria: que façam parte de uma sociedade homogênea fundamentada em assassinatos, deslocamentos e perdas contínuas.

Como podemos nós, que queremos outra sociedade, um espaço heterogêneo, resistir ao violento maquinário disciplinador do Estado?

Steven Heydemann, analista de Oriente Médio da Brookings Institution, disse que o governo de Assad não estava abordando questões críticas pós-conflito de maneira significativa.

A resposta encontra-se nos princípios e prioridades que guiam a precoce recuperação e reconstrução pós-conflito. Não é de se surpreender que, por serem desenhados para mitigar os danos a os fracassos de governança que causaram a violência em massa, as perspectivas de que voltem a acontecer diminuem. Quando a probabilidade é de que se ampliem os danos e fracassos anteriores à guerra, as perspectivas de que volte a acontecer são muito maiores. Tudo o que sabemos sobre a abordagem da reconstrução do regime de Assad confirma que agravará os fatores que levaram milhões de cidadãos sírios às ruas em 2011 e logo depois a uma revolta armada. É pouco provável que uma reconstrução pós-conflito, que não aborde questões críticas de legitimidade e capacidade institucional e nem forneça aos cidadãos segurança, justiça ou inclusão política, seja estável.

O site na internet do opositor Enab Baladi usou o mesmo argumento, e afirmou que a Feira Internacional de Damasco nem sequer conseguiu êxito em oferecer um espetáculo impecável. Não foi permitido aos jornalistas visitar a feira, o discurso do primeiro-ministro “provocou alvoroço na mídia devido aos erros de ortografia, gramática e pronúncia”, e um caminhão foi obrigado a levar dezenas de visitantes depois que o ônibus não apareceu.

Depois de cinco anos, a 59ª Feira Internacional de Damasco reabre nos arredores da capital do país.
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Exibição internacional… otimismo dos damascenos interrompido.

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