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“Obediência aos maridos é solução para violência contra crianças”, declara ministra de Uganda, onde quase 40% das crianças sofrem violência

Categorias: África Subsaariana, Uganda, Governança, Juventude, Mídia Cidadã, The Bridge

Itungu Zonnet, moradora do distrito de Kasese, oeste de Uganda, já era mãe de três aos 19 anos. Foto de Edward Echwalu, publicada com permissão do autor.

Em 18 de julho, parlamentares de Uganda reuniram-se em Kampala, capital do país, para discutir uma moção solicitando ao governo priorizar a promoção e proteção de crianças contra a violência. O debate foi impulsionado por relatório policial [1] divulgado em março de 2017, apontando o aumento acentuado nos crimes contra mulheres e crianças em Uganda entre 2010 e 2016.

Uma das participantes do debate, a ministra de Estado para Assuntos da Infância e da Juventude, Florence Nakiwala Kiyingi, fez uma declaração espantosa em relação ao aumento da violência contra crianças em Uganda. “Se querem proteger uma criança”, disse [2]Kiyingi, “vocês devem amar e respeitar o pai da criança”.

A incapacidade das esposas de respeitar seus maridos está forçando os homens a abandonarem seus filhos, diz ministra para Assuntos da Juventude.

A honorável Nakiwala Kiyingi afirma que uma das principais causas para o abandono e abuso de menores é o fracasso das mulheres em respeitar os homens

Ante o questionamento do vice-presidente do parlamento, Jacob Oulanyah, para que a ministra desse evidências que sustentassem o argumento, Kiyingi respondeu: “Tenho longa experiência como líder no reino de Buganda, orientando moças e jovens mães… Quando convencemos às esposas a serem sensatas, vemos que os pais são capazes de cuidar e amar seus filhos”.

Quase 60% dos 37 milhões de ugandeses têm menos de 18 anos. Cerca de 55% das crianças em Uganda têm menos de 5 anos [8], e 38% daqueles entre 6 e 17 anos vivem na pobreza. Um estudo de 2014 [9] feito pelo Ministério de Gênero, Trabalho e Desenvolvimento Social, do qual Kiyingi faz parte, aponta que 55% das crianças com menos de 5 anos são privadas de dois ou mais direitos traçados pela Convenção Internacional sobre Direitos da Criança [10]. Uganda ratificou a Convenção das Nações Unidas em 1990 e os direitos das crianças estão claramente descritos na Constituição do país e na Lei da Criança [11].

Uma pesquisa do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) de 2015, Análise Situacional de Crianças em Uganda [9], também enfatizou que a proteção dos direitos das crianças continua um desafio crítico para essa nação do leste da África. Outro estudo conduzido pela Unicef, em parceria com o governo de Uganda, destaca que quase 40% das crianças do país já sofreram violência física, algo que os afetou negativamente. Essa informação preocupante é respaldada pela Comissão de Direitos Humanos de Uganda em seu relatório anual de 2015 [12], que reiterou que os progenitores, sobretudo os pais, cada vez mais abandonam seus filhos, sobretudo aqueles nascidos fora do casamento. Devido aos irrisórios recursos empregados na proteção de crianças pelo governo, o Unicef solicitou que haja mais investimentos em mudanças nas normas sociais e no apoio ao cumprimento da lei de proteção de menores.

Em março de 2017, a Polícia de Uganda divulgou dados que mostram que a violência contra mulheres e crianças aumentou em um período de sete anos. O vice inspetor-geral, Martin Okoth Ochola, atribuiu o aumento desse tipo de violência ao abuso de drogas e álcool, à pobreza e a disputas de terra, reportou o jornal Daily Monitor na época. Ele citou outros fatores como normas culturais e a quebra dos valores da família. Mais de 185 mil casos de violência de gênero foram registrados ao longo do período de mais de sete anos. Somente em 2016, a polícia recebeu 31 041 boletins de ocorrência desse tipo de crime.

Foto de Edward Echwalu, publicada com autorização

Apesar das evidências sobre a complexidade e a extensão desse problema, a ministra responsável por combater a violência contra crianças parece acreditar que a solução depende das mulheres, que devem aprender a afagar o ego dos homens. As ideias de Kiyingi não surgiram do nada. Seu antecessor, Ronald Kibule, chocou o país em 2013 [13], ao culpabilizar as vítimas de estupro pela violência que sofreram. “A maioria das mulheres usa roupas inapropriadas, principalmente as jovens”, declarou o ministro. “Se ela se veste de maneira vulgar e é estuprada, ninguém deve ser preso”.

Culpar as mulheres pela violência cometida contra elas e suas crianças demonstra uma ignorância assustadora sobre as realidades de muitas famílias de Uganda. A sugestão de que vítimas de crimes “pediram por isso” é perigosa, pois isenta os culpados de seus crimes. Ainda mais preocupante é o fato de que vários membros do parlamento, tanto homens como mulheres, inclusive médicos, demonstraram apoio à retórica misógina de Kiyingi.

Mulher transporta produtos para o mercado nas proximidades da cidade de Lira, ao norte do país. Foto de Rachel Mabala, utilizada com autorização da autora.

Especialista em saúde pública e ministro de gabinete, o médico Chris Baryomunsi citou [2] “estudos que apontam claramente que determinado comportamento das esposas afugenta os maridos, o que pode causar perturbações na família”.

Além de regurgitar velhos preconceitos contra mulheres, os participantes desse debate vazio e egocêntrico não ofereceram qualquer solução. Esse tipo de julgamento em relação a pessoas que sofreram abuso diz muito sobre vários legisladores de Uganda e, de modo geral, sobre a sociedade ugandense. O parlamento, que já abrigou legisladores socialmente progressistas, autores de uma constituição relativamente inovadora, agora tornou-se um circo, onde qualquer um menciona estudos imaginários para rejeitar as vozes e as experiências de milhões de ugandenses vítimas da violência, com pouco espaço para oposição.

Mas enquanto parlamentares falham em evoluir, cidadãos não estão dispostos a serem silenciados. As declarações de Kiyingi irritaram muita gente e alguns chegaram a questionar sua capacidade de compreender seu papel de líder, como fez a ativista pelos direitos das mulheres Winnie Byanyima, que também é diretora executiva da organização não governamental Oxfam International.

Que besteira! Onde estão as provas? A ministra precisa de orientação sobre sua função e como dar declarações públicas.

A Honorável Nakiwala Kiyingi me envergonha! Um comentário desse em pleno século 21?

Discurso vazio. Algumas pessoas deveriam saber a hora de aposentar as cordas vocais!

Repugnante. Custo a acreditar que ela tenha se ouvido dizer essas palavras misóginas, carregadas de ignorância e de falta de amor próprio.

Sério!! Nos dias de hoje e nesse século! @uwonet [18] @FOWODE_UGANDA [19] @FemnetProg [20] @amwa_ug [21] @FIDA_Uganda [22], há muito trabalho a fazer em relação às mulheres ministras.

Apesar de a participação feminina no parlamento chegar a 34% e haver um número razoável de mulheres no governo, declarações misóginas como essas vindas de ministros e legisladores evidenciam que apenas a representação de gênero não basta para garantir justiça para mulheres e crianças, e que ainda há um árduo trabalho pela frente para mudar esses padrões culturais e tradições e assim avançarmos.