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Na Venezuela, o teatro também é parte da resistência

Categorias: América Latina, Venezuela, Arte e Cultura, Guerra & Conflito, Mídia Cidadã, Migração e Imigração, Política

Ana Gabriela Melo (ao centro) com o elenco da sua peça “Sopa de tortuga” (“Sopa de Tartaruga”), que reflecte sobre a identidade venezuelana, os movimentos da Diáspora e os altos e baixos da vida quotidiana que não para, mesmo em tempos de crise nacional. Fotografia utilizada com permissão.

O teatro, como qualquer outra actividade artística e criativa a acontecer na Venezuela, enfrenta e reflecte sobre a crise nacional [1] que se intensificou nos últimos meses. A luta económica, política e social [2] traduz-se em protestos sangrentos [3] e turbulência política [4], incluindo um referendo organizado pelos grupos da oposição e o início da Assembleia Constituinte [5] envolta em controvérsia.

As dificuldades vividas nas ruas imiscuem-se em todos os aspectos da vida dos venezuelanos e são usadas, frequentemente, para projetar um clima de incerteza nos palcos que reúnem as companhias e grupos de teatros nacionais.

A planificação, preparação e montagem das peças, assim como as expetativas dos actores, diretores e das instituições ligadas ao teatro fazem com que tornar as peças uma realidade seja uma enorme façanha. Por esta razão, muitas das companhias de teatro que continuam activas reúnem os seus esforços sob a hashtag #TeatroDeLaResistencia [6] (#TeatroDaResistencia). No canal do YouTube da companhia de teatro La Caja de Fósforos [7](A Caixa de Fósforos) podemos ver exemplos deste esforço com um vídeo onde os actores interpretam manifestantes.

Global Voices conversou com Ana Melo [8], uma das representantes mais ativas dos teatros de Caracas, capital da Venezuela, para compreender os movimentos por detrás da hashtag e como é que a actividade teatral se insere no contexto de crise da Venezuela. O teatro da resistência, como afirma a actriz e dramaturga, é o teatro que se recusa a morrer apesar de ter tudo contra si e enfrentar sérios problemas éticos e humanos. Para Melo, muitos na Venezuela consideram o teatro uma profissão inútil:

Hay gente que piensa que lo que se hace no tiene sentido. (…) Se piensa que la resistencia que realmente hace eco en la sociedad se hace en la calle y no en el escenario. Por lo tanto, los actores sufren de algo parecido a una baja autoestima en relación a su oficio. Preguntas como para qué hacer esto o es el teatro útil al país en medio de la mayor crisis de su historia invaden la mente de los artistas y el espacio actoral con fuerza”.

Há pessoas que pensam que isto não faz sentido (…) que a resistência que terá impacto na sociedade é feita nas ruas, não no palco. Por isso os actores sofrem de uma espécie de baixa auto estima em relação à sua arte. Perguntas como para quê fazer isto ou será o teatro útil ao país no meio da maior crise da sua história invadem com força a mente dos artistas e o espaço cénico.

E ainda,

Yo siento que en parte hay también un comportamiento obsesivo. Es más fuerte la idea, lo que quieremos comunicar. Es una necesidad de comunicar que es más fuerte que tú, que el desgano e incluso que la crisis. Mi lucha ha sido, a pesar de marchas y crisis, seguir motivando al grupo de actores, alimentar nuestra vocación.

Eu sinto que em parte também é um comportamento obsessivo. A ideia que queremos transmitir é mais forte. É uma necessidade de comunicar que é mais forte que tu, mais forte que a relutância e até que a crise. A minha luta tem sido, apesar das manifestações e crises, continuar a motivar o grupo de actores e fomentar a sua vocação.

Para Ana Melo, “o teatro está relacionado com a especificidade venezuelana e não com uma posição política” e por isso encontra inspiração em cada uma das coisas a acontecer em seu redor, em todas as histórias que o definem:

Son como dos fuerzas opuestas que están conviviendo y que son complicadas de llevar: por un lado hay como un desengaño, una sensación de para qué estoy haciendo esto. Por otro lado, hay una especie de terquedad, que es como una cosa casi autómata: yo toda mi vida he hecho esto. Si hay una función, voy a ir y punto.

São como duas forças opositoras que coexistem e são difíceis de controlar: por um lado há um desengano, um sentimento de para que faço isto. Por outro lado, há uma espécie de teimosia, é quase como uma coisa automática: fiz isto toda a minha vida. Se há uma atuação eu vou e pronto.

A recompensa

Mas, com esta crise sobre o valor da atividade artística no país, qual é a motivação destes corajosos que decidem continuar a levar a cena peças de teatro na Venezuela?

Ana Melo assegura que a recompensa está naquele breve momento depois da apresentação de uma peça em que alguém diz que a história representada o deixou a pensar. Assim, o prémio é saber que a mensagem foi passada com sucesso e que ficará em uma ou mais mentes. É perceber que a inquietude que outrora estava contida num individuo sai, ocupa e muda algo naqueles que a viram materializar-se, que a viveram e que se apropriaram dessa inquietude.

[En la creación] hay dolor de por medio. Algo que te duele fuertemente. Cosas que se engendran a partir del dolor. En ese sentido es un proceso un poco tortuoso, pero sabroso también. Y de ahí que alguien diga que ha visto la obra y se quedó pensando, significa que hay eco de algún modo. Eso para mi es todo un pago.

El del teatro puede llegar a ser un trabajo titánico y es doloroso una vez que termina. Una vez que una obra llega a las tablas duele dejarla a ir. Sin embargo, siempre quedan cosas por decir, así que todo vuelve a empezar… Casi como un castigo griego. El teatro es la forma en la que puedes tomar todo lo que está pasando, pasarlo por un filtro, digerirlo desde otro punto de vista. Te conecta con algo emocional, te ayuda a entender desde la emoción, te hace preguntas.

[Na criação] há dor. Algo que te magoa muito. Coisas que são criadas pela dor. Nesse sentido, este processo é um pouco tortuoso, mas apreciável. E quando alguém diz que viu a peça e que o deixou a pensar, significa que a peça ressonou de alguma maneira. Para mim, isso é a recompensa.

O teatro pode tornar-se um trabalho hercúleo e é doloroso quando chega ao fim. Doí quando um projecto chega ao palco e temos de o deixar partir. Contudo, há sempre coisas para dizer e começa tudo de novo… quase como um castigo grego. O teatro é a maneira de pegar em tudo o que está a acontecer, filtrá-lo e assimilá-lo de outro ponto de vista. Liga-te a um lado emocional, ajuda-te a compreender através da emoção, faz-te perguntas.

Para Melo a recompensa também vem da própria resistência de uma arte que desde o seu início esteve ligada à realidade política e que existirá e resistirá enquanto houverem grupos e dinâmicas sociais em mutação. Em poucas palavras, enquanto houver vida, existirá um teatro para traduzir a experiência humana num acto estético necessário ao alívio e despertar da consciência.