Um clichê jornalístico sobre a África é aquele sobre pequenas iniciativas de empreendedorismo que parecem abrigar grande potencial de transformação social.
De casas construídas com garrafas PET às bicicletas que carregam telefones celulares — passando por inumerável quantidade de aplicativos capazes resolver tudo, da estiagem no campo à corrupção –, essas iniciativas geralmente envolvem algum tipo de solução precária para problemas estruturais graves e são noticiadas com certa exaltação.
Mas quando um ministro moçambicano sugeriu usar carcaças dos autocarros das empresas municipais de transporte público em salas de aula, a internet local reagiu com desprezo e indignação. “Afinal é assim que combatemos a pobreza, levando os pobres para o lixo?”, disse um usuário.
A sugestão foi dada pelo ministro dos transportes e comunicações Carlos Mesquita após visitar as empresas estatais de transporte das cidades de Maputo e Matola, em que constatou que dezenas de autocarros estão em estado de inutilidade.
O ministro deu então a ideia de usar as carcaças para o sector de educação, que também está a enfrentar problemas sérios de infraestrutura e obriga muitos alunos a estudarem por debaixo das árvores. A edição do dia 22 de junho do jornal MediaFax publicou sua declaração:
A transformação de autocarros paralisados em salas de aulas pode ser uma solução a dar aos autocarros que já não servem para o transporte. Sabemos que a questão de alunos sentados no chão e ao relento é um problema social que preocupa a todos. Claro que será necessário fazer algumas adaptações, mas as diferentes partes do autocarro podem também ser aproveitadas nesse sentido
Rafael Machalela, jornalista moçambicano que esteve a cobrir a visita, contou ao Global Voices a reação dos presentes após a sugestão:
Aquilo suscitou alguma gargalhada nos jornalistas e na comitiva ministerial por não terem entendido os moldes, em concreto, de como as carcaças seriam usadas como salas de aula.
Nas redes sociais, a ideia provocou reações negativas.
Muitos enfatizaram a obrigação do Estado em prover educação de qualidade à população, apontando a recente compra de carros Mercedes Benz para a Assembleia da República como prova de que os recursos públicos poderiam ser melhor empregados.
Domingos Gundana, por exemplo, questionou no seu mural de Facebook:
Eu não entendi a inovação sugerida para albergar os filhos do povo (…) Senhor ministro diz que nossos filhos, sim nós pobres, merecem o lixo das empresas? afinal é assim que combatemos a pobreza, levando os pobres para o lixo? Será que seu neto vai aceitar estudar na escola machimbombo do lixo?Não tenho nada contra a reciclagem, mas sugerir que filhos de pobres sejam entulhados nas carcaças de lixo das empresas, Hummmm, demais não acha?
Chell Evaristo preferiu falar dos riscos que os autocarros podem representar para os alunos:
Com tantos riscos de oxidação (ferrugem) e acúmulo de muita coisa prejudicial à saúde, esse ministro encheu a boca para sugerir uma coisa daquelas a uma camada tão propensa a doenças? Com um Mercedes daqueles que compraram quantas salas de aulas teriam essas crianças? Enfim, não achei correta essa ideia numa altura em que há pessoas que têm direito de um carro avaliado em quase 5.000.000.00mt [220 mil dólares americanos] e por cima sem pagar combustível e nem manutenção da mesma
Numa publicação do Professor Universitário Julião Cumbane em que este questiona o que seus seguidores achavam da ideia, Rosário Cumbane comentou:
Eu penso que esta forma propositada de pensar do ministro é de mediocridade uma vez que revela uma banalização de um sector tão importante qual é da educação. Ele não podia pensar no melhor para educação. Por outro lado, esta tentativa revela também alguma inconsistência na gestão da área do sector de transporte. Na minha opinião, se ele quisesse ajudar em alguma coisa, transformaria os Mercedes Benz em machimbombos para transporte público de passageiros
Por sua vez, a Bancada parlamentar do Movimento Democrático de Moçambique, que faz oposição ao governo da FRELIMO, entende que a ideia afirma falta de criatividade e também faz alusão às receitas da exportação da madeira:
A sugestão revela o défice de criatividade, esgotamento de imaginação e sobretudo o desinteresse pela dignidade e bem-estar para os cidadãos. Pois, Moçambique tem todo tipo de recursos para construir salas de aulas condignas, com carteiras de qualidade pois o nosso País é rico em madeira. Mas para nossa frustração essa madeira é enviada para China. Com esta sugestão o Ministro vem provar ao que todo povo já sabe e disso está muito consciente: o governo do dia e o seu partido já não tem ideias para Moçambique.
Na mesma senda de aproveitamento de receitas da madeira, Fabião Agostinho escreveu no seu mural de Facebook:
Mas o senhor tem consciência do que diz..? Porque iremos optar nesta alternativa se o nosso país produz muita madeira capaz de suprir as difíceis de Cadeiras nas Salas de Aula..? Porque iremos imitar sistemas de países com défices de Madeira se nós temos estes recursos em abundante. Se levassem o Dinheiro da Compra dos Mercedes-Benz e edificassem mais Salas de Aulas, não iriam minimizar esta crise..?
Embora constituam minoria, houve também internautas que receberam positivamente a sugestão do ministro. Por exemplo, Luís Mazoio apoiou a ideia suportando-se no drama que recentemente presenciou numa das escolas da capital moçambicana:
Sr Ministro Mesquita autorize por favor que aqueles autocarros sejam imediatamente distribuídos pelas escolas necessitadas. Passei ontem por volta das 6.30 da manha por uma escola na aldeia Samora Machel no distrito de Marracuene, bem a beira da estrada nacional. Ainda havia nevoeiro pelo que não deu para tirar fotografia. O professor coitado circulava pelo pátio com os meninos procurando por um lugar que já tivesse raios solares para sentar e ensinar aqueles meninos tossindo e congelando de frio. Era de partir o coração. Mande Já as carcaças Sr. Ministro. E hoje são 23 graus de temperatura máxima.
Muzila Nhatsave também foi outro internauta que viu a ideia com bons olhos escreveu:
Boa ideia acho (…) quantas crianças aqui mesmo em Maputo sentam no chão e com este frio. Só quem nunca sentou debaixo de uma árvore para aprender o ABC pode achar estúpida essa ideia. Aqui na Matola há escolas sem salas de aulas suficientes e bem próximas a empresa a menos de 2 km. Quem nunca viu autocarro a ser transformado em restaurante , take away.?
Bitone Viage fez um pedido irónico para que carros ligeiros avariados sejam transformados em salas para Jardins de Infância:
Parabéns meu Ministro, peço também para avisar aos ministérios disponibilizarem aquelas sucatas de carros ligeiros para serem transformados em creches.