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Com saúde das contas públicas ameaçada, Moçambique aprova compra de carros luxuosos para deputados

Categorias: África Subsaariana, Moçambique, Economia e Negócios, Governança, Política, Protesto
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Cada carro custou cerca de 220 mil dólares, totalizando cerca de 3.8 milhões de dólares. Foto: @N93/Flickr CC BY 2.0

As contas públicas de Moçambique podem até estar fora de controle [2], mas isso não impediu a Assembleia de República de adquirir [3]17 viaturas Mercedes Benz, modelo c-180, para uso dos seus deputados. Cada carro custou cerca de 220 mil dólares, totalizando cerca de 3.8 milhões de dólares.

A compra, que tem gerado indignação nas redes sociais, acontece em um momento delicado para as finanças públicas do país. A antes pujante economia moçambicana foi severamente abalada no ano passado, quando veio a público que três empresas contraíram secretamente [4] cerca de 1.4 bilhão de dólares, equivalentes a 10% do PIB do país, em empréstimos de bancos ingleses com garantias do Estado, mas sem conhecimento da Assembleia.

O estado pode agora ser objeto de litígio de fundos abutres detentores dos títulos, a exemplo do que aconteceu com a Argentina [5] em 2005. Na Inglaterra, a situação deu gás ao movimento Jubilee Debt Campaign [6], grupo de ativistas ingleses que pressionam para que os credores não bloqueiem o processo de renegociação da dívida, atualmente ensaiado pelo presidente de Moçambique Felipe Nyusi.

Enquanto a negociação não acontece, o Estado se vê obrigado a penalizar a população para equilibrar as contas no curto-prazo: ainda no ano passado [7], o governo cortou o décimo-terceiro salário de alguns servidores públicos.

A compra dos carros foi realizada pela Comissão Permanente da Assembleia, órgão que coordena as atividades do plenário, sem no entanto ter sido matéria de discussão pelos legisladores.

Ainda no dia 9 de Junho, dois dias depois da medida ser divulgada, o porta-voz do governo de Moçambique Ministério da Economia e Finanças defendeu [8]frente à imprensa o gasto aparentemente exorbitante com transporte privado dos deputados.

É de direito que os membros da Assembleia da República sejam transportados por carros protocolares daquele nível, como acontece com os membros de outros órgãos de soberania do Estado.

O professor universitário e Edil do Município de Quelimane, Manuel de Araújo [9], também repudia a aquisição e esclarece [10] que o que está em causa não é o direito que assiste aos deputados, mas o momento em que as viaturas foram compradas.

Não nos entendam mal, não estamos contra os Mercedes Benz que vos dão estatuto, estamos é contra o momento em que tomaram a soberana decisão de os adquirir sem olhar para o contexto em que o país se encontra por causa da vossa preguiça em fiscalizar as ações do governo! Ou seja o país está onde está em parte porque vós não fostes capazes de fiscalizar ação do governo e como se não bastasse incluíram tais dívidas [ilegais] na Conta Geral do Estado, tentando legalizá-las para que seja o pacato povo a pagar as falcatruas de uns e de outros”.

Muitos também frisaram a situação caótica da rede de transporte público do País — a demanda nas grandes cidades é largamente atendida por transporte informal e privado, viaturas de caixa abertas chamadas de “my love [11]”. Zee Mavye [12], estudante finalista de licenciatura na Universidade Eduardo Mondlane, publicou [13] no seu mural de Facebook:

Veja só como é irónico: o patrão [povo que paga imposto] está no My love às 5h apanhando banho de nevoeiro a caminho do gabinete para garantir a não falência da empresa, enquanto o empregado [deputado] ainda está dormir para depois fazer se transportar num Benz com vidros fechados quando forem 8:30 depois de um café garantido pelos impostos do patrão. Mas bem bem, estes não engasgam se ao pensar no sofrimento do povo?.

A situação motivou [14] Venâncio Mondlane, deputado do menor partido com assento parlamentar a lançar uma campanha de repúdio às viaturas. Dos 250 deputados, é o único que demonstrou indignação publicamente até agora.

Afonso Dhlakama [15], líder da oposicionista Renamo, classificou a decisão como “lamentável” à imprensa por telefone — em conferência acompanhada pelo Global Voices no dia 15 de Junho –l, mas afirmou que não vai mobilizar seu partido para revertê-la. “É preciso frisar que o presidente do partido não dá ordem para devolução. Porque não da ordem? porque foi o Estado quem requisitou e não nós. Os deputados da Renamo não pediram carros de luxo nem escolheram as marcas”, afirmou.

Jorge Matine [16], pesquisador no Centro de Integridade Pública [17], organização local que atua em prol da transparência pública, não demonstrou muita esperança em reverter a situação: “Os famosos Mercedes já estão na posse [18] dos respectivos dirigentes”, afirmou.

Outras reações nas redes sociais incluem a do analista político Domingos Gundana [19], que questionou [20] no Facebook:

Será que não podiam ter esperado a normalização da economia, a redução do custo de vida no bolso do cidadão, não podiam dar prioridade à materialização do dossier Paz, aprovando os instrumentos que estão em discussão [no parlamento] para depois receberem os tais Mercedes como prémio pelo trabalho feito? Nem Paz temos, nem comida temos, nem transporte público temos, nem medicamentos temos, salários sem datas fixas, crianças a sentar no chão debaixo de árvores e alguém esbanja dinheiro por algo que não é prioridade.

Bitone Viage [21], moçambicano mestrando em Ciência Política na Universidade Federal do Pará [22], no Brasil, pediu aos membros da Assembleia da República no Facebook [23] para que não encarem aquele lugar como fonte de riqueza:

Prezados não façamos da Assembleia da República um grande jackpot, onde o voto popular é visto como casa de loteria. Será que há mesmo necessidade de proverem Mercedes Benz aos nossos deputados. Aliás, estes por sua vez mesmo sabendo que estamos face a uma tal propalada crise, que moral prevalecerá para aceitar os ditos Mercedes?

Também houve manifestações no Twitter: