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Para mulheres trans que fogem da América Central para os EUA, o “sonho americano” é apenas encontrar um lar sem violência e discriminação

Categorias: América do Norte, América Latina, El Salvador, Estados Unidos, Guatemala, Honduras, México, Direitos Humanos, Direitos LGBT, Mídia Cidadã

    Ativistas desfilam pelas ruas de São Salvador durante a marcha do orgulho LGBTTI. Foto autorizada de: María Cidón Kiernan.

Este artigo é uma versão resumida de uma reportagem produzida por Animal Político, María Cidón, Priscila Hernández, Prometeo Lucero, Revista Factum, e W Radio México, publicada originalmente pela CONNECTAS [1]. A publicação neste espaço faz parte de um acordo de conteúdo compatilhado.

Elas fogem da Guatemala, de El Salvador e de Honduras, perseguidas por sua identidade de gênero. Em sua jornada, sofrem ainda mais perseguições e assédio que os demais imigrantes.  O “Sonho Americano” para elas representa apenas encontrar um lugar onde possam viver em paz.

Ser mulher trans em El Salvador, Guatemala e Honduras é sinônimo de discriminação. Viver de acordo com sua identidade de gênero significa sofrer crimes de ódio que costumam ocorrer impunemente.

Os países que compõem o chamado Triângulo Norte da América Central  [2]possuem as maiores taxas de violência contra transexuais da América Latina. De janeiro de 2008 a dezembro de 2016, a organização Transgender Europe registrou crimes [3] contra 159 pessoas trans na região: Honduras está no topo da lista, com 89 crimes, seguida da Guatemala, com 40 e El Salvador, com 30. Trata-se apenas da ponta do iceberg, já que muito crimes não são notificados.

Policiais e promotores não identificam as vítimas por sua identidade de gênero, apenas por suas genitálias. Logo, não há dados oficiais sobre assassinatos de pessoas trans. Soma-se à carência de dados oficiais, a falta de investigação, que afeta principalmente as mulheres trans, vítimas mais vulneráveis de crimes de ódio.

Diferente de seus conterrâneos, no caso das mulheres trans, migrar não significa somente ir em busca de novas oportunidades ou fugir da violência generalizada. É também uma busca por um lugar no mundo onde não haja discriminação, como mostra esta reportagem [4].

Na viagem rumo ao norte desses países, migrantes trans são expostos às maiores violações, como a que sofreu Rafael Antonio, mais conhecida como “Eléctrica.”

Ela viajou de Honduras ao México e descreve os assédios que sofreu, no trajeto de um país ao outro:

En Choluteca (Honduras) lo que existe más es la violación a los gais, golpes y maltratos. Nos agreden primero los mareros porque quieren que uno esté con ellos a la fuerza y creo que no es justo. Yo dije: voy a salir del clóset, voy a aceptarme por lo que soy, yo valgo mucho.

Em Choluteca (Honduras) é muito comum gays serem estuprados, espancados e maltratados. Integrantes de gangues são os primeiros a nos atacar, pois querem que a gente fique com ele à força e não acho isso justo. Eu disse: Estou saindo do armário, vou me aceitar como sou, valho muito.

No México, Eléctrica não foi melhor tratada. Ao entrar no país em primeiro de setembro de 2016, ela foi esfaqueada e atacada em Tenosique, Tabasco. Eléctrica solicitou um visto humanitário, que lhe foi negado. A justificativa foi que não havia evidência suficiente para a concessão do asilo. Eléctrica discorda:

Yo pienso que solo con el hecho de que me acuchillaron, ya tengo bastantes derechos, aún siendo inmigrante.

Acho que só pelo fato de eu ter sido esfaqueada, deveria ter muitos direitos, mesmo como imigrante.

Mema Perdomo, de El Salvador, é outro exemplo do sacrifício que essas mulheres fazem para proteger suas vidas no ambiente a sua volta. Ela chegou, inclusive, a pensar em suicídio. As gangues são o motivo por que fugiu de seu país, conta:

Hace 10 años yo me vine de El Salvador. [Una de] mis mejores amigas fue quemada viva en Usulután, le echaron gasolina los mareros. […] Yo conocía a los mareros, entonces ellos me amenazaron. Y por eso, yo con el miedo y el pánico, me vine.

Saí de El Salvador há dez anos. Uma de minhas melhores amigas foi queimada viva em Usulután, integrantes de uma gangue jogaram gasolina nela. […] Eu os conhecia, então eles me ameaçaram. Por isso, cheia de medo e pânico, vim para cá.

Mais tarde, ela acabou indo morar em Houston, nos Estados Unidos (EUA), onde viveu com a irmã por um tempo, mas ainda não conseguiu recuperar paz de espírito.

Na primeira fronteira, fora do Triângulo Norte, no México, a situação é bem diferente do que elas haviam esperado. Não há centros de refugiados suficientes, e a discriminação não cessa.

Daniela, por exemplo, teve que fugir da Cidade do México, onde era constantemente assediada por seus colegas de trabalho [4]:

En la Ciudad de México fui agredida y por eso decidí seguir adelante. En Tijuana me siento más acogida. Mantenerte ocupada hace que se me olviden las cosas. Se me olvida tanto bullying, tanta discriminación. A la larga tanta violencia que sufres, hace que te vuelvas violenta y no te queda otra que ser violenta cuando te toca serlo.

Fui atacada na Cidade do México e por isso decidi me mudar. Me senti melhor acolhida em Tijuana. Manter a mente ocupada me ajuda a esquecer de determinadas coisas e me faz esquecer o bullying e a discriminação. Depois de sofrer tanta violência, você acaba se tornando violenta e não lhe resta outra opção senão ser violenta quando necessário.

De acordo com reportagem da Organização Internacional de Migração, depois do triplo homicídio ocorrido em El Salvador, 136 lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, travestis e intersexuais (LGBTTI), sobretudo trans, fugiram do país para o México e para os EUA nos últimos anos.

Por isso, fugir é uma necessidade e buscar asilo no México ou nos EUA é a forma mais rápida de obter proteção, mas agora nem essa possibilidade é garantida.

No México, a Comissão Mexicana de Ajuda a Refugiados (Comar) tem negado esse direito de maneira sistemática e irregular, segundo organizações que dão apoio a migrantes. De janeiro a setembro de 2016, menos de um terço dos 752 solicitantes de asilo foi reconhecido como refugiado, ou seja, somente 22,3% das solicitações foram aceitas.

Enquanto as mulheres trans viajam pelo México para cruzar a fronteira com os EUA, um dos poucos espaços que lhes oferecem uma estada segura e livre de ódio é o Hogar Refugio La 72 [5] em Tenosique, Tabasco. A organização acolhe migrantes desde 2012.

Já na Cidade do México, considerada uma das capitais da América Latina com mais diversidade, as pessoas trans não se sentem nada seguras.

Um exemplo claro é o que ocorreu com Paola, uma profissional do sexo trans morta a tiros [6] por um cliente dentro do carro dele. O homem foi preso e liberado horas depois por “falta de provas”. A amiga Kenya, que testemunhou o crime, carregou com outras amigas o caixão [7] de Paola da funerária até a movimentada Avenida Insurgentes, colocando-o no meio da via (que cruza a Cidade do México de norte a sul). Elas bloquearam a avenida durante horas até a chegada da tropa de choque.

Nos povoados mais ao norte, na fronteira com os EUA, também não há garantia de segurança.

Existem 90 centros religiosos de recuperação e nenhum está designado especificamente para atender as necessidades das pessoas trans. Diretora de um abrigo em Tijuana chamado Jardín de las Mariposas, [8] Yolanda explica que a discriminação nesses centros de recuperação é grave.  Ela cita como exemplo um episódio do qual ficou sabendo pela imprensa em Tecate, Baixa Califórnia, ao leste de Tijuana. Um jovem trans saiu de um desses centros e no dia seguinte foi encontrado morto, queimado em um buraco.

As exceções são poucas, como a Casa do Deportado Sagrado Coração (Casa del Deportado Sagrado Corazón [9]), dirigida por Perla Hernández, que é mulher trans. Desde 2012, o espaço acolhe deportados que perambulam ao longo da fronteira e pessoas sem lar. A casa comporta no máximo 40 pessoas. Aos sábados e domingos, ela trabalha tirando pressão arterial.

A falta de acesso a serviços médicos, à educação e ao trabalho faz com que muitas mulheres trans sintam-se indignas de direitos e vulneráveis, segundo o diretor do Centro de Atenção Integral a Pessoas Trans [10], Rubí Juárez, que coordenou um censo sobre mulheres na área de prostituição e bares de Tijuana.

Mulheres trans migrantes que tiveram o status de refugiadas negado no México continuam a jornada até os EUA, onde solicitam asilo às autoridades. O processo é lento e pode levar anos, e nesse período elas vivem em uma espécie de limbo, tentando se adaptar ao novo país, com o medo constante de serem deportadas de volta para o lugar de onde fugiram.

Nos EUA, as políticas de migração estão cada vez mais rígidas. Desde 2012, as solicitações pendentes de asilo por parte de cidadãos mexicanos e dos países do Triângulo Norte quintuplicaram.

Embora o Estado norte-americano aceite desde 1994 [11] pedidos de asilo de minorias LGBTTI que temem a perseguição em seu país, até o momento não foi capaz de registrar o número de asilos concedidos com base em orientação sexual ou identidade de gênero.

O Fundo de Ação do Centro para o Progresso Americano [12]tentou preencher essa lacuna estatística a partir dos casos atendidos pelas organizações Immigration Equality [13]e Human Rights First [14].

Apenas dois casos de asilo concedidos a pessoas trans do México e de países da América Central foram registrados em 2010. Em 2016, este número chegou a 23. Três a cada dez casos são provenientes desses países, mas uma pequena parte da população pede proteção ou pode solicitá-la. Muitos permanecem em situação irregular, com medo de serem deportados de volta para o lugar de onde precisaram fugir.

A reportagem na íntegra da Connectas está disponível em espanhol neste link. [1]