Vereador de São Paulo faz inspeção surpresa em escolas à procura de ‘doutrinação esquerdista’

Faixa vista em um protesto em Brasília em agosto de 2015. Foto: Autor desconhecido/circulada massivamente nas redes sociais

Uma visita surpresa realizada pelo vereador Fernando Holiday a escolas de São Paulo reacendeu a polêmica em torno da campanha Escola sem Partido, que visa combater “doutrinação ideológica” nas escolas, mas é visto pelos seus críticos como instrumento de censura a professores e estudantes.

No dia 3 de abril, Holiday realizou visitas surpresas a duas escolas municipais de São Paulo com o objetivo de averiguar a ocorrência de “doutrinação” por parte dos professores. A visita foi transmitida ao vivo em sua página do Facebook, em que ele diz:

Vamos fiscalizar (…) o conteúdo que está sendo dado em sala de aula, isto é, se está havendo algum tipo de doutrinação ideológica, se os professores estão dando aquilo que realmente deveriam dar, de acordo com a grade curricular, ou se tem professor entrando lá com camiseta do PT (Partido dos Trabalhadores), do MST (Movimento Sem Terra), jogando tudo pro alto e fazendo aquela doutrinação porca que a gente já conhece.

Fernando Holiday, de 20 anos, foi eleito vereador de São Paulo pelo partido de direita Democratas (DEM) em 2016, alavancado pelo Movimento Brasil (MBL), no qual atua como coordenador nacional. O MBL esteve à frente dos protestos que levaram ao impeachment da ex-presidente do PT Dilma Rousseff, hoje base do governo Michel Temer e do prefeito de São Paulo João Dória Jr.

Uma das principais bandeiras do MBL é a campanha Escola sem Partido, criada em 2004 com o objetivo de combater “doutrinação ideológica” nas escolas secundárias. Apoiada sobretudo por setores conservadores da sociedade brasileira, a campanha parte do pressuposto de que haveria uma predominância do ensino de conteúdos que seriam identificados com uma visão de mundo “de esquerda”, que engloba desde a defesa dos direitos de minorias à educação sexual, passado pela crítica ao liberalismo econômico.

A repercussão do vídeo de Holiday gerou uma onda de manifestações contrárias ao Escola Sem Partido e à iniciativa do vereador de inspecionar escolas. O Secretário de Educação municipal Alexandre Schneider reagiu em um post no Facebook, afirmando que “o vereador exacerbou suas funções e não pode usar de seu mandato para intimidar professores”.

No dia 13, relatores da Organização das Nações Unidas (ONU) enviaram um comunicado ao governo de Michel Temer denunciando os projetos de lei com base no Escola sem Partido. O manifesto, assinado pelos relatores especiais de educação, liberdade de expressão e liberdade de religião, afirma que as propostas do movimento são vagas e podem “causar censura e auto-censura por parte dos professores”.

Após a divulgação do comunicado, o fundador do movimento Miguel Nagib publicou um post no Facebook classificando-o como “desonesto”. O Deputado Federal Marco Feliciano, pastor da Igreja Universal e conhecido por suas posições homofóbicas, gravou um vídeo em seu canal do YouTube afirmando que a oposição da ONU significaria que o Escola Sem Partido estaria “no caminho certo”.

O vereador de São Paulo Fernando Holiday (DEM), em uma das escolas que visitou no dia 3 de abril. Foto: Screenshot/Facebook

O que é o Escola sem Partido?

O movimento Escola sem Partido foi criado em 2004 para denunciar e coibir o que os apoiadores da ideia consideram ser práticas de doutrinação ideológica nas escolas. Seu manifesto proclama que as salas de aula do país são usadas como locais para a disseminação de ideologias políticas e de conteúdos que podem estar em conflito com as convicções morais e religiosas dos pais dos alunos. Nagib costuma dizer que a prática é “fato notório”, sem contudo apresentar dados empíricos que fundamentem tal afirmação.

Desde 2014, o movimento tem encampado projetos de lei na Câmara dos Deputados, no Senado Federal e nas diversas assembleias legislativas estaduais do país. Chegou a virar lei no estado de Alagoas no ano passado, mas acabou sendo revogada pelo Supremo Tribunal Federal em março — a corte decidiu que o poder legislativo estadual não tem competência para legislar sobre normas gerais de educação.

Os projetos preveem a inclusão de disposições sobre neutralidade política e ideológica na lei de diretrizes e bases da educação e, além disso, cria mecanismos de controle sobre o exercício profissional dos docentes. Críticos da proposta afirmam que ela resultaria na violação da liberdade de expressão de professores e de um policiamento do ambiente escolar que comprometeria a livre circulação de ideias.

Não há, por exemplo, definição determinada sobre o que configuraria ou não a prática de doutrinação, exceto pela vaga disposição de que o professor teria o dever de apresentar as principais opiniões sobre um tema. Não é claro se temas em que há, na prática, um consenso acadêmico, como a evolução das espécies ou o aquecimento global, deveriam ser tratados como polêmicos.

Outro ponto controverso no programa do Escola sem Partido é a tentativa de censurar conteúdos que possam ser identificados como “ideologia de gênero” — um conceito que não é utilizado nas ciências humanas, e é geralmente dito para desqualificar ideias que pressuponham a diversidade de identidades de gênero e orientações sexuais.

Enquanto os projetos de lei seguem debatidos no Congresso, o movimento segue ganhando espaço na sociedade e na política institucional. Em maio do ano passado, o Ministro da Educação Mendonça Filho encontrou-se em seu gabinete com o ator e notório apoiador do Escola sem Partido Alexandre Frota. Frota foi recebido como representante do Revoltados Online, grupo militante de direita que acabou tendo sua página no Facebook banida da rede social no ano passado por propagar recursos de ódio.

Outro caso é o da hoje professora Ana Caroline Campagnolo, 25, que move um processo na justiça contra sua ex-orientadora de mestrado Marlene de Fáveri, 57, pesquisadora da área de gênero na Universidade do Estado de Santa Catarina. Campagnolo, que tem amplo apoio do MBL e do Escola sem Partido, pede uma indenização de R$ 17,5 mil (5700 USD) por danos morais por entender ter sido discriminada por Fáveri ao se identificar como cristã, conservadora e anti-feminista.

Ataques nas redes sociais

Após seu posicionamento no Facebook, o secretário Schneider foi alvo de uma campanha massiva de ofensas por partidários de Fernando Holiday e do MBL.

As vereadoras Sâmia Bonfim e Isa Penna, ambas do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) declararam apoio a Schneider e também tiveram seus números de telefone divulgados em redes sociais, passando a receber ameaças. O caso chegou à Delegacia de Crimes Eletrônicos de São Paulo, que investiga a atuação do site JornaLivre, ligado ao MBL, e que teria sido o responsável por divulgar os contatos das vereadoras.

Segundo o jornal Folha de São Paulo, após o que considerou ser uma falta de respaldo por parte da Prefeitura diante dos ataques, Alexandre Schneider teria pedido demissão de seu cargo. Contudo, o Prefeito João Dória Jr. o teria convencido a ficar. O prefeito nega que o pedido de demissão sequer tenha ocorrido e assume uma postura neutra no conflito entre seu secretário e o vereador, afirmando que “ambos exacerbaram, e ambos tinham razões”.

Fernando Holiday, que também enfrenta acusações de ter utilizado recursos não-declarados em sua campanha eleitoral (pratica conhecida no Brasil como “caixa 2″), disse em sua página do Facebook que continuará a “fiscalizar” as escolas municipais de São Paulo.

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