Angolanas protestam contra novo código penal, que proíbe aborto sem excepções

Centenas de mulheres protestaram em Luanda neste sábado contra a criminalização do aborto. Foto: Ondjango Feminista/Facebook, publicada com permissão

Centenas de mulheres protestaram em Luanda neste sábado, 18 de Março, contra o novo código penal, que prevê proibição total do aborto em Angola, mesmo em casos de violação.

A mobilização foi organizada nas redes sociais ao longo da semana após a Assembleia Nacional ter aprovado uma versão preliminar do código que irá substituir àquele em vigor desde 1886, herdado da administração portuguesa.

A lei antiga já proibia a interrupção voluntária da gravidez, mas abria excepção em casos em que a gravidez colocasse em perigo a gestante, violação ou por má formação do feto. Já a versão actual do novo código proíbe o aborto integralmente, além de prever penas de quatro a dez anos de prisão para a mulher que praticar aborto, em contraste com as actuais penas de dois a oito anos.

A votação final pode acontecer já na próxima plenária do parlamento, prevista para o dia 23 de Março, ainda que alguns parlamentares, diante das reacções da sociedade angolana, já tenha solicitado um adiamento.

Carregando faixas com os dizeres “nem caixão, nem vela: sou livre!” e “criminalizar mata”, protestantes caminharam no início da tarde do cemitério da Santana até o Largo das Heroínas, na região central de Luanda, sem interferência da polícia.

O colectivo Ondjango Feminista, que ajudou a organizar a marcha, publicou diversos vídeos no Facebook durante o protesto:

Diversas mulheres também discursaram ao final da marcha:

Zenaida Machado, pesquisadora da Human Right Watch para Angola e Moçambique, referiu-se também a marcha:

A versão preliminar é apoiada maioritariamente pelo partido do governo Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), cuja bancada votou integralmente a favor de sua aprovação. A oposição contabilizou 36 abstenções e nenhum voto contra. Fora do parlamento, um dos mais declarados defensores da nova legislação é a igreja católica. O porta-voz da Conferência Episcopal de Angola e São Tomé (CEAST), José Manuel Imbamba, afirma que “a vida deve ser defendida em qualquer nível”.

Se esta versão do novo código for aprovada, Angola se juntará aos únicos seis países do mundo que actualmente proíbem o aborto sem excepções: Malta, Vaticano, República Dominicana, Nicarágua, El Salvador e Chile. Caso contrário sucedeu em Moçambique em 2014 durante a revisão do código penal sobre a mesma matéria passando a ser legal a realização do aborto, facto que já sucedia em Cabo Verde, África do Sul e Tunísia, os únicos países em África que não o restringem.

A matéria suscitou inúmeros protestos nas redes sociais angolanas ao longo da semana, entre eles o de Isabel dos Santos, a filha do presidente angolano. Ela publicou no seu Instagram um texto da advogada Ana Paula Godinho, por sua vez uma das organizadoras da marcha:

Queridas mulheres Angolanas, hoje é um dia de tristeza para mim. Peço-vos que vejam o que foi aprovado na Assembleia da República relativamente à matéria do aborto no novo código Penal. Antes de fazer qualquer comentário, faço um apelo a todas as deputadas, da situação e da oposição. Olhem com olhos de ver para o que foi aprovado. Lembrem-se que o Código Penal de 1886 era mais favorável à mulher, sobretudo nos casos de violação e de má formação do feto, (aborto eugénico). Agora vamos retroceder? Pensem bem, antes que as mulheres tenham que sair à rua, tal como aconteceu lá atrás, queimar os sutiens. Desta vez terão que colocar cintos de castidade.

Se uma mulher for violada e ficar grávida é obrigada a ter o filho ou se interromper a gravidez arrisca-se a, no mínimo ser condenada a cinco anos de prisão. Afinal é violada duas vezes: primeiro pelo violador e depois pela Lei. Mulheres, Deputadas, estamos a deitar por terra muitas conquistas. Retrocedemos 200 anos. Senti-me humilhada como mulher. Voltarei ao assunto, depois que me passar a estupefacção. Boa semana a todas. Beijinhos✊???

Aline Frazão, cantora, compositora, produtora em Angola fez um apelo contra as pretensões do novo código penal, lembrando que o Estado é laico e as leis não podem se fazer na base de uma religião:

Lembrete básico: o Estado é laico. As leis não se fazem de acordo com os princípios desta ou daquela religião. Da mesma forma que o Estado de Direito deve garantir a liberdade religiosa, também deve proteger as escolhas daqueles e daquelas que não são religiosos. Principalmente quando se trata dos direitos das mulheres, gera-se uma imensa confusão entre as leis da bíblia e as leis do Estado.

Pior ainda é quando tanto o Estado como a Igreja pensam que são proprietários dos nossos corpos. Espantem-se, pois, quando nos viram as costas. Está claro que se não marcharmos juntas nunca se conseguirá atingir a igualdade e a justiça. Se não levantarmos a voz, ninguém o fará por nós. É hora de gritar.
#pelodireitoaoabortolivreeseguro
#votoconsciente2017

Mauro Steinway, jovem e artista moçambicano, considera o apoio da igreja católica uma ‘’guerra contra as mulheres’’:

Em Angola, a igreja católica fazendo o que sempre fez, usar sua influência nas mentes alienadas do 3o Mundo para promover sua agenda Cristã e maternidade aos pobres.
Uma autêntica guerra contra as mulheres foi legalizada. Homens dizendo o que mulheres devem fazer com seus corpos.

A igreja católica é a que mais promove maternidade compulsória aos pobres. As mulheres ricas vão sair do país ou subornar os serviços de saúde como forma de obter o aborto, enquanto que as pobres vão morrer tentando obter um.

A FEMAFRO, uma organização portuguesa que é conduzida por mulheres para defesa dos direitos das mulheres negras africanas e afrodescentes se solidariza com a causa:

Solidariedade com a luta das companheiras angolanas da Ondjango Feminista, neste momento difícil em que o seu governo aprovou a criminalização do aborto em quase todas as situações. Esta decisão é um atentado aos direitos humanos das mulheres e colocará a vida e a saúde de muitas em risco, sobretudo as mais pobres.

#PeloDireitoAoAbortoLivreESeguro

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