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Entre lajes e telonas: a história do garoto negro e gay que virou cineasta

Categorias: América Latina, Brasil, Arte e Cultura, Ativismo Digital, Etnia e Raça, Juventude, Mídia Cidadã

Valter Rege na laje onde são gravados os vídeos do canal no Youtube ‘Energia Positiva’.  Foto: Vagner Vital/Agência Mural, publicado com permissão

Este post foi publicado originalmente [1] no medium da Agência Mural, com quem o Global Voices mantém uma parceria. Reportagem de Vagner Vital.

Com seis anos veio a revelação de que a vida não seria fácil. Aos gritos de macaco e mulherzinha, teve os dentes arrancados ao bater com a boca na guia de uma calçada após ser empurrado por alguns garotos. Descobriu que ser gay e estar vivo seria um desafio, mesmo sem saber de fato o que significava a palavra que substituía seu nome enquanto socos e pontapés o alcançavam.

Sentenciado, Valter Rege encontrou nas câmeras o seu instrumento de luta e fala. Ele criou o canal no Youtube ‘Energia Positiva [2]’, lema também tatuado em seu braço direito, no qual debate, entre outros temas, o empoderamento negro. A laje, palco onde os vídeos são gravados, se perde em meio a tantas outras da Vila Clara, bairro na periferia da zona sul da cidade de São Paulo, formando um grande estúdio a céu aberto.

As roupas estendidas e as caixas d’água — duas — denunciam as outras utilidades do espaço. “Eu não tenho vergonha de gravar na laje, de mostrar onde vivo. Essa é minha realidade”, diz. “A laje é a representatividade da periferia”, completa.

Aos 32 anos, o jovem de 1,62 de altura e de sorriso largo divide o tempo entre as gravações para o canal e a realização de outro sonho. Com apoio dos colegas do trabalho, escreveu um roteiro, sendo contemplado por um edital do Ministério da Cultura (MinC) para a produção de um filme curta-metragem. “Preto no Branco”, o filme, ainda sem data de estreia, é o primeiro trabalho profissional da carreira do cineasta.

No enredo, um jovem negro, interpretado pelo ator Marcos Oliveira, é acusado de roubo após esbarrar em uma mulher na porta de um shopping. Levado à delegacia, sua inocência é contestada com discursos de ódio e discriminação racial.

Em uma daquelas coincidências em que a vida imita a arte, certo dia, descendo de um ônibus a caminho do trabalho, logo após escrever a história do filme, Valter foi parado por uma senhora aos gritos: “Ladrão! Você é ladrão! Roubou meu celular!”. Assustado e sem saber o que estava acontecendo, respondeu que não havia pegado o aparelho e caminhou em direção à entrada da empresa onde trabalha.

“Eu queria ter olhado nos olhos dela e dito que não pode sair por aí acusando as pessoas, mas tive medo. A gente tem medo de apanhar, tem medo dos policiais não serem honestos”, diz. A mulher então chamou a polícia, que, minutos depois, bateu na porta da empresa à procura de Valter. Por sorte, o segurança não assimilou as características da pessoa procurada a ele, fazendo com que os policiais e a mulher fossem embora.

“Naquela época estava em alta o boom dos justiceiros. Meu medo era estar sozinho e alguém fazer algo comigo”, conta. “É triste você passar por isso quando criança e perceber que ainda continua quando adulto”, completa.

Durante as gravações do curta-metragem ‘Preto no Branco’. Foto: Arquivo pessoal, publicado com permissão

Durante a infância, ele morou em um cortiço com os pais e duas irmãs em meio aos casarões do bairro de Moema, região entre os metros quadrados mais caros da cidade. Revezavam os dois únicos banheiros do cortiço com outras 30 famílias.

Aos 10 anos, não entendia por que não podia brincar com as outras crianças dos casarões e prédios altos, onde muitas vezes as mães passavam a maior parte do dia trabalhando. O salto no custo de vida na região fez então com que a família se mudasse para a Vila Clara. A adaptação não foi fácil. O videocassete e a televisão se tornaram seus companheiros inseparáveis.

A identificação como negro veio após os primeiros contatos com o audiovisual ainda na adolescência. “Lá em Moema, quando eu via um negro na rua, logo atravessava para o outro lado. O cinema me fez sair para conhecer meu novo bairro, a ver outros negros e a me reconhecer”, diz.

Em um dos vídeos do canal no Youtube, Valter volta à rua onde morou, em Moema, e comenta as principais diferenças entre os dois bairros e a importância da construção da autoestima e do orgulho de onde mora.

O primeiro roteiro, escrito aos 13 anos, foi ganhando vida nos vídeos caseiros gravados com uma filmadora 8mm, comprada com o salário do primeiro emprego como office-boy. Foi mensageiro em uma livraria e soldado da aeronáutica, até que conseguiu uma bolsa de estudos para estudar Rádio e TV na Universidade Belas Artes. Foi lá que deu os primeiros passos para a profissionalização de seu trabalho, lançando, de forma autoral, o “Quero ser Beyoncé”, filme media-metragem sobre empoderamento feminino, exibido no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB).

Pouco depois, deu luz ao projeto de um livro, chamado “Sempre Amigos”, editora Multifoco, onde narra a história de Eduardo, um jovem homossexual que está descobrindo a sexualidade e aprendendo a lidar com autoaceitação.

“Com o livro eu quis mostrar o quanto é importante sermos quem somos, e também dizer aos pais que lessem, que isso não é uma escolha”, diz. “Procuro sempre tirar das experiências negativas algo de positivo. Isso é a energia positiva para mim”, conta.

O garoto que teve os dentes quebrados quando criança por ser negro e homossexual, não acredita em meritocracia. Do alto da laje, entre varais e caixas d’água ou nas salas de cinema, traz na representatividade o empoderamento, com orgulho, no mais preciso significado da palavra. “Nós que somos negros, gays e periféricos, temos que ser mais fortes. E somos”, completa.