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Um ano para viver estrategicamente

Categorias: Mídia Cidadã, GV Community Blog
The Global Voices core team, with Mexico contributor Juan Tadeo and digital security expert GIllo Cutrupi. Photo: Jeremy Clarke [1]

O núcleo principal da Global Voices reunido em Coyoacán, na Cidade do México, juntamente com o colaborador nacional Juan Tadeo e o especialista em segurança digital Gillo Cutrupi. Foto: Jeremy Clarke.

Mês passado, o núcleo principal da Global Voices se reuniu na Cidade do México em um retiro de quatro dias. Costumamos nos reunir uma vez ao ano, mas a última vez que havíamos conseguido isso foi em janeiro de 2015, após a Cúpula da GV [2] em Cebu, nas Filipinas. Apesar de termos nos tornado bem eficientes como uma equipe virtual, não há nada como transpor obstáculos, trazer ideias novas e desenvolver novos projetos estando frente a frente.

What planning session is complete without a cloud of sticky notes on a wall? [3]

Que tipo de sessão de planejamento está completa sem uma parede repleta de post-its?

A nossa reunião na Cidade do México foi especialmente importante para que pudéssemos vislumbrar e pôr planos estratégicos em ação, uma vez que 2017 promete ser um ano crucial para o futuro da Global Voices. Nós lidamos com uma ameaça que se alastra e põe em risco o conceito de fidelidade da notícia e da informação em diversos países ao redor do mundo. Temos observado esta corrente em expansão e nos empenhado em combatê-la desde o início das nossas atividades, há mais de uma década. Ao mesmo tempo, conversas on-line vêm sendo filtradas nas redes sociais, predominantemente, pela ordem algorítmica de histórias e de vozes, criando filtros dentro das nossas realidades que podem ser totalizantes. É desanimador, mas não surpreendente, por exemplo, que as atividades on-line em Myanmar se dão sobretudo pelo Facebook [4]; enquanto que, em muitas sociedades, esta camada de aplicação é a única parte da internet que as pessoas utilizam.

Naturalmente, a ideia de que espaços on-line são livres e abertos sempre foi vista com ceticismo por comunidades acostumadas à total filtragem e vigilância por parte dos seus governos. Essa é uma realidade de muitas pessoas que vivem e trabalham em países como China, Bahrein, ou em casos mais recentes de governos opressores, como o da Turquia [5].

Os obstáculos que enfrentamos ao unirmos forças como uma comunidade continuam sendo enormes, mas as características desses obstáculos mudaram. Temos menos estabilidade e, talvez, menos percepção por parte das entidades de mídia digital que mediam as nossas ideias. Podemos notar essa mudança na forma na qual os leitores interagem conosco. Um exemplo disso são os picos de tráfego da Global Voices que eram comuns com as nossas coberturas de fatos do dia-a-dia, como quando um terremoto atingiu [6] a província chinesa de Sichuan, em 2008. Nós sabíamos que este tipo de interesse nas nossas histórias estava relacionado à documentação em tempo real realizada pelos cidadãos chineses, que compartilhavam conteúdo on-line que nós então traduzíamos e analisávamos. Em 2011, o crescimento no tráfego nas nossas páginas estava diretamente relacionado à nossa cobertura das revoltas árabes, do terremoto e do tsunami no Japão. Durante todo esse tempo, pudemos perceber que os picos regulares no tráfego estavam ligados aos incidentes mundiais, como desastres naturais, revoltas e transições de governo, além de protestos e conflitos.

Contudo, nos últimos anos, vimos uma mudança de interesse e participação. Hoje, os picos de tráfego acompanham fenômenos na internet que são desconexos entre si ou fortemente influenciados por esses mesmos fenômenos.  Eles servem mais para chamar atenção do que gerar informação, sendo, de fato, gerados e influenciados por algoritmos. Um exemplo disso é a reação a um comentário inflamado feito por Donald Trump no Twitter, que recebeu maior cobertura e atenção [7] dos meios de comunicação do que outros assuntos mais relevantes que poderiam ter sido noticiados na época. Esses acontecimentos importantes podem não chegar ao conhecimento do público por não receberem as curtidas algorítmicas dadas a notícias mais superficiais e sensacionalistas, seja de propósito ou por acaso.

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Tráfego na web da Global Voices em 2008-2011. Os picos estão relacionados a eventos atuais.

Nós da Global Voices nunca entendemos que o debate entre o ceticismo e a utopia cibernética fosse interessante ou útil. Nós nos empenhamos, antes de tudo, no campo da interação e do discurso humano que tendem a ser tão conturbados, como também reconhecemos que as tecnologias são ferramentas criadas e desenvolvidas com liberdades que podem favorecer ou prejudicar o interesse das pessoas. A dificuldade em predizer os efeitos morais de muitas dessas tecnologias é natural. Ainda que seja possível desenvolver tecnologias com base em princípios como transparência, comunicação ou empatia, esse esforço, sem dúvida, nunca será o bastante para garantir benefícios a pessoas, comunidades ou públicos diversos pelo simples fato de que não há unanimidade em relação aos valores que devem sustentar nossas sociedades.

Diante disso, estamos bem cientes de que os valores alinhados com os mercados e com o controle do governo aumentam consideravelmente o domínio destes sobre as redes de internet e móveis. Algumas pessoas acreditam que esses valores sejam os condutores do progresso humano, ainda que os interesses dos mercados e dos governos não sejam necessariamente os mesmos. Entretanto, o interesse de ambos está relacionado com a vontade de compreender, relacionar e classificar as atividades humanas de maneira que boa parte da nossa presença on-line esteja sob constante vigilância e monitoramento, seja por redes sociais, anunciantes e aplicativos de terceiros ou agências governamentais. Os governos de muitos países estão alertas e querendo controlar o diálogo na internet para que possam gerenciar, controlar e governar seus cidadãos, seja por meio de um estratagema de autoritarismo gerenciado ou para ficarem a par das atividades de pessoas suspeitas. Não é raro ver todo o conceito de mídia cidadã, a camada digital de conversa que acompanha e traz melhorias para as nossas vidas, como uma ameaça à ordem e aos braços do poder controlados por governos, oligarquias vigentes, regimes ou maiorias, sejam elas étnicas, sectárias ou econômicas.

Consequentemente, hoje é mais difícil, arriscado, ou, por vezes, mais perigoso produzir o tipo de histórias que produzimos. Parceiros da Global Voices de Bangladesh, da Etiópia, da Síria, do Bahrein, da Macedonia, do Marrocos, da Venezuela, de Cuba e de vários outros países tiveram de lidar com ameaças pessoais em 2016. Em alguns casos, eles decidiram parar de escrever ou de contribuir com a Global Voices ou com outras plataformas on-line por temerem por suas seguranças. Outros preferiram se autocensurar, ou, em outras situações, mudar de país.

Nós acreditamos que esse tipo de ameaça continuará no futuro. Somos bem realistas em relação ao leque variado e efetivo de táticas de repressão de discurso que muitos países têm à disposição, desde campanhas de desinformação para distorcer e confundir, como as das histerias atuais sobre notícias falsas às ameaças a sistemas por meio de ataques DDoS, além de formas de pressão mais diretas como doxing, hackeamento ou roubo de informações pessoais, como também leis repressivas aplicadas para silenciar, prender, castigar fisicamente ou levar à morte.

A entrada e a participação nas arenas cada vez mais controversas e hostis de debate público parece agora algo mais ousado, diria até intimidador para muitas pessoas. Sabemos que até aqueles que dirigem ataques podem se tornar alvos na próxima sessão de crueldades. O modelo chinês de ferramenta de busca por carne humana [8] está disponível para todos, e a ideia geral está mudando novamente, retornando à definição atávica empregada nos séculos XIX e XX que descreve o lado mais obscuro e violento do ser humano presente em nossas interações sociais. Nesse contexto, comunidades em prol da prática de princípios e regras de discurso na internet se fazem mais importantes do que nunca.

Este pensamento me faz lembrar das conversas que tivemos na Cidade do México. Passamos boa parte do tempo discutindo sobre linguagem e palavras que pudessem incorporar a razão pela qual a Global Voices existe. Depois de muitas tentativas, encontramos uma proposta simples, mas consistente de declaração de princípios que, espero, seja o ponto de partida para toda estratégia e, quem sabe, seja uma estratégia pelo seu próprio mérito. Eis a declaração:

We acknowledge and celebrate that individual attention and human connection are central to building bridges across countries and languages, regardless of origin, standing, or access to power.

Reconhecemos e celebramos que a atenção individual e a conetividade humana são centrais para que se criem elos entre culturas e línguas, independentemente de origem, posição ou acesso ao poder.