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Um ritual de proteção para “fechar o corpo” liga tradições religiosas diferentes no Brasil

Categorias: América Latina, Brasil, Arte e Cultura, Etnia e Raça, Religião
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Candomblé. Imagem do usuário de Flickr Luciano Paiva. CC BY-NC-ND 2.0

Quando o comércio de escravos veio para o Brasil no século 16, as crenças e os rituais africanos sobreviveram às longas e perigosas viagens transatlânticas. Ao longo dos séculos, tais crenças viriam a unificar muitos dos descendentes dos cerca de quatro milhões de escravos trazidos para o país, por meio das atuais religiões afro-brasileiras do candomblé e da umbanda.

Durante o mesmo período de colonização, 700.000 imigrantes portugueses se fixaram no Brasil, trazendo o seu próprio tipo de catolicismo com eles. Alguns desses colonos acabariam assentando-se no Sertão, o implacável deserto brasileiro, e seus descendentes viriam a ser conhecidos como “sertanejos”.

Os dois grupos viriam a compartilhar não só uma grande parte da mesma região — o Nordeste –, mas também um aspecto importante entre as suas religiões: um ritual conhecido como o fechamento de corpo.

O fechamento de corpo é baseado em uma oração de proteção que resulta em um corpo protegido. O ritual é feito para afastar o mal — seja ou espiritual, físico ou os dois. Se a garantia procurada for no sentido físico, o beneficiário acreditaria estar protegido contra ataques dos seus inimigos, sejam eles perpetrados por facas, armas de fogo ou veneno de cobra.

Como o fechamento de corpo se tornaria um fio condutor que percorre essas duas diferentes tradições religiosas no Brasil? A história começou há mais de quinhentos anos.

Catolocismo como um manto

No século 15, os portugueses foram à África em busca de uma rota para a Índia, iniciaram a produção de cana de açúcar e, em seguida, fizeram a transição para um negócio mais lucrativo: o do comércio de escravos. Durante o mesmo período, na África subsaariana, os missionários de Portugal chegaram com o objetivo de converter os habitantes locais para o cristianismo.

A manifestação posterior de sistemas de crenças africanas no Brasil sugere que a missão dos padres portugueses não foi totalmente bem-sucedida. Em vez de mudarem fundamentalmente suas crenças, os africanos acabaram as complementando e/ou as disfarçando com elementos da religião dos escravistas portugueses.

A revista brasileira Mundo Estranho escreveu sobre [2] essa ocultação num artigo de janeiro 2014:

Naquela época, chegaram ao país os primeiros africanos de origem iorubá, um povo que ocupava a região onde hoje ficam Nigéria, Benin e Togo. A religião dos iorubás era o candomblé, mas eles aportaram no Brasil como escravos e não podiam cultuar suas divindades livremente […] Por causa dessa proibição, os escravos começaram a associar suas divindades com os santos católicos para exercerem sua fé disfarçadamente. Como os santos católicos são bem numerosos, existem divindades que são identificadas com mais de um santo. Por exemplo: Oxóssi, o rei da caça, é associado a São Jorge e a São Sebastião.

O candomblé como religião foi formalizado no século 19. Depois veio a umbanda já no século 20, que é principalmente uma mistura de candomblé e espiritismo, esse por sua vez um movimento religioso que acredita na existência de espíritos e reencarnação.

As duas religiões de origem africana são “comparáveis ao cristianismo e Islã”, já que “elas têm fundações, ritos, visões e interpretações completamente diferentes”, de acordo com o blog [3] Tenda de Umbanda Filhos da Vovó Rita, que é gerido por um terreiro de umbanda em Santa Catarina. No entanto, o blog explica que candomblé e umbanda compartilham alguns traços comuns, tais como a devoção aos deuses conhecidos como orixás e o uso de contas e tambores de mão.

Uma das crenças africanas a fazer parte deste manto católico era justamente o ritual de corpo fechado. Curiosamente, o ritual – também chamado de “kura” — normalmente é praticado a cada ano na sexta-feira santa, em terreiros por todo Brasil.

O blog O Candomblé explica [4] o processo do ritual:

As Kuras são incisões feitas no corpo do Yaô (noviço já iniciado no Candomblé), que por um lado representam o símbolo de cada tribo, como o símbolo de cada Ilê (casa ou terreiro), mas têm o objectivo de fechar o corpo do Yaô, protegendo-o de todo o tipo de influências negativas.

Para isso são feitas as incisões (o que chamamos de abrir) e nessas incisões é colocado o Atim (pó) de defesa para aquele Yaô (iniciado). O Atim tem uma composição base de diversas plantas e substâncias, mas o Atim utilizado para as Kuras, contêm também as ervas do Orixá daquele Yaô em quem ele vai ser aplicado.

A umbanda, por outro lado, geralmente emprega métodos menos invasivos para “fechar” o corpo. Em vez de incisões, o pai ou mãe de santo (chefes do terreiro) usa uma mistura de ervas e outros ingredientes para depois delicadamente fazer o símbolo da cruz [5] sobre as partes diferentes do corpo da pessoa que está se submetendo ao ritual.

Os ingredientes variam. De acordo com o blog Sete Porteiras [6], elementos como chaves, giz branco, ervas, azeite, correntes, amuletos, orações, velas, água, conchas, correntes de aço e alho são normalmente usados. Cada chefe de terreiro tem sua própria maneira particular de manipular os elementos físicos voltados para a proteção astral.

As orações de proteção de um bandido

Os afro-brasileiros não foram os únicos que passaram a praticar o fechamento do corpo. Os camponeses residentes do Sertão também adotaram o ritual.

Localizado no interior nordestino, o sertão é o deserto brasileiro. A baixa precipitação anual na região leva a secas prolongadas. O solo é pouco favorável à agricultura. Lá, a vida depende dos ciclos da natureza e de sacrifícios e batalhas diárias, mas, apesar disso, sua população resiste e sobrevive. Euclides da Cunha, um escritor e repórter brasileiro que cobriu a Guerra de Canudos, uma rebelião camponesa que aconteceu no final do século 19 no Sertão, falou sobre a longevidade e a força do camponês rural quando disse que “o sertanejo é, antes de tudo, um forte”.

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Casa de sertanejo. Imagem do usuário de Flickr Wagner Rochink. CC BY 2.0

A região tem uma cultura distinta. Ao longo dos séculos, tradições orais se misturaram e deram origem à rica literatura local, conhecida como cordel; estilos musicais, como o forró, frevo, xaxado, samba de roda e samba de côco; e festividades de inverno (durante a estação chuvosa) centrados em torno de São João Batista.

A religião no Sertão também tem um toque único. Camponeses criaram o seu próprio tipo de catolicismo rural no Brasil, combinando “a magia, superstições, a presença de amuletos, orações fortes e de corpo-fechado, rezadeiras, beatos”, de acordo com o cientista social Max Silva D'Oliveira [8].

Na dissertação [9] intitulada “O Mandonismo do Sertão”, autor Luis Carlos Mendes Santiago descreve vários métodos e cerimônias para fechar o corpo praticados no Sertão, que às vezes vão além de simples orações. Em um exemplo, descrito pelo famoso antropólogo brasileiro Câmara Cascudo, o beneficiário permanece de pé, com o pé direito sobre o esquerdo, em um balde de água, ao receber gestos feitos com uma chave. Outra maneira inclui uma freira que costura uma hóstia — considerado o corpo de Cristo — sob a pele enquanto são feitas orações e movimentos rituais.

Um sertanejo que ficou famoso por por praticar o ritual de corpo fechado foi Virgulino Ferreira da Silva, mais conhecido como Lampião. Durante os anos 1920 e 1930, Lampião foi um líder de cangaceiros, grupo de camponeses armados que ora prestavam serviços a grandes proprietários de terra, ora se rebelavam contra eles. O autor americano Billy Jaynes Chandler, que escreveu o livro “Bandit King”, o compara com o americano Jesse James, um famoso fora-da-lei dos Estados Unidos e uma figura central no imaginário do faroeste americano.

Enquanto Lampião ardentemente e continuamente infringiu a lei, ele nunca rompeu com as suas crenças religiosas, que se estendiam para o terreno místico. O blog Lampião Aceso descreve [10] as crenças de Lampião durante a época de seu banditismo nômade:

…onde era comum a crença de que aquele que soubesse alguma oração de corpo-fechado e tomasse seus cuidados, estaria protegido contra a peste e as balas mortais dos inimigos. Lampião e seus cangaceiros recitavam esta oração diariamente. O líder do cangaço acreditava que a força da fé era suficiente para protegê-los dos perigos naturais do Sertão […]. Outro guerreiro, séculos antes, tornou-se símbolo da proteção divina: São Jorge, que corresponde, na mitologia, ao Orixá dos exércitos e dos guerreiros. […] Lampião incluiu em sua oração de fechamento de corpo não só vários elementos da oração a São Jorge, como principalmente a imensa religiosidade que recobre o povo sertanejo.

Lampião, ao centro, e sua esposa Maria Bonita, à direita, por volta de 1936. Foto: Benjamin Abraão Moto/domínio público [11]

Lampião, ao centro, e sua esposa Maria Bonita, à direita, por volta de 1936. Foto: Benjamin Abraão Moto/domínio público

Além de apenas recitar as orações de proteção, o Lampião era bem conhecido, tanto entre os seus amigos bandidos quanto os seus inimigos, por sua capacidade de ver “além”. Não só isso, mas seus inimigos nas Forças Volantes — soldados que contratados para lutar contra os bandidos — também levavam a sério o significado de seus próprios sonhos. No livro “Lampião: Senhor do Sertão”, a autora Elise Grunspan-Jasmin acrescenta [12]:

Lampião não tinha somente o dom de interpretar os sinais anunciadores de boa fortuna, de perigo ou de desgraça. Dizia-se que era dotado de uma intuição de adivinho e, de acordo com alguns dos seus companheiros, de um ‘sexto sentido': ele ‘via’ o que os inimigos procuravam dissimular e também o que ninguém tinha possibilidade de ‘ver’.

Apesar de suas orações diárias para proteção, o Lampião, que deve ter se sentido invencível durante o seu reinado de 16 anos como o mais famoso fora-da-lei do Brasil, acabou sendo traído, o que levou ao seu assassinato por tropas policiais. Seu corpo “fechado” estava literalmente aberto e uma parte dele foi exposto publicamente como exemplo para outros que pudessem se inspirar em sua causa. Pode-se dizer que a sua morte é a prova de que o ritual de corpo fechado não funciona, mas talvez suas quase duas décadas como um fora-da-lei prove o contrário.

Uma saída para aqueles que mais sofreram

O mais interessante talvez não seja o fato do ritual de corpo fechado sobreviver ou morrer com certas pessoas, mas que sobrevive culturalmente através dos séculos, mesmo quando praticado por descendentes de dois grupos sociais completamente diferentes.

Apesar de ser um ritual que não nasceu no Brasil, o fato de que eles criaram raízes entre aqueles que mais sofreram — descendentes de escravos e colonos do sertão — não parece ser coincidência. Talvez a razão pelo qual o ritual sobreviva esteja na paisagem, tanto geográfica quanto religiosa. Um ponto de convergência que por acaso está no Brasil.