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O WhatsApp está de volta no Brasil. Mas por que foi bloqueado no primeiro lugar?

Categorias: América Latina, Brasil, Governança, Liberdade de Expressão, Mídia Cidadã, Tecnologia, GV Advocacy
Photo: Hackread [1]

Montagem de imagens que combina o logotipo do WhatsApp e a bandeira do Brasil. Mixada por Hackread.

Milhões de brasileiros ficaram sem acesso ao WhatsApp depois de um tribunal local ter ordenado a suspensão durante 48 horas da aplicação de mensagens instantâneas em todo o país. Pouco depois, o Tribunal de Justiça de São Paulo aceitou um recurso e, a partir de 17 de dezembro, os utilizadores recomeçaram gradualmente a ter acesso ao serviço.

Por que o WhatsApp foi bloqueado? Muitas das informações que poderiam ajudar a responder a essa pergunta não são atualmente de domínio público. Mas parece que a decisão está relacionada com uma investigação criminal [2] sobre um homem acusado de tráfico de drogas, assalto à mão armada e associação com a maior organização criminosa do Brasil, o PCC [3]. Esta investigação está sendo conduzida à porta fechada, por isso não foram divulgados outros detalhes.

Em julho e agosto de 2015, os oficiais judiciários brasileiros ordenaram ao WhatsApp para que disponibilizasse os dados pessoais dos utilizadores que estavam a ser investigados pela Polícia Federal. Mas, segundo um comunicado de imprensa [4] do Tribunal de Justiça de São Paulo, o WhatsApp, de propriedade do Facebook, recusou-se a disponibilizar esses dados.

…a decisão da juíza é plenamente motivada, mas equivocada. Equivocada porque havia outros caminhos a serem seguidos, e que implicassem em prejuízos ao Facebook (dono do WhatsApp), sem que fosse necessário tirar o serviço do ar e prejudicar seus usuários. – Gustavo Gindre, Intervozes

A 16 de dezembro, o Ministério Público do Brasil respondeu ordenando aos provedores de telecomunicações o bloqueio total do WhatsApp, afetando, segundo as estimativas da empresa, 100 milhões de utilizadores no Brasil.

Alguns sites de países da América Latina de língua espanhola relataram [5] que os utilizadores de países como Argentina, Uruguai, Chile e Venezuela [6] também sofreram interrupções no acesso ao serviço de mensagens. Isso deve-se ao facto de as operadoras desses países terem em comum com o Brasil uma rede de cabos submarinos que ligam a América do Sul e o Caribe.

A operadora brasileira de telecomunicações Oi apresentou a 16 de dezembro um recurso contra a decisão, que o tribunal de São Paulo aceitou, alegando que “não é razoável que milhões de utilizadores sejam afetados por causa da inércia de uma empresa”. Ao meio dia de 17 de dezembro, o serviço voltou a estar disponível.

O que é que o Marco Civil da Internet tem a ver com isso?

A moção de bloqueio foi autorizada pela juíza Sandra Regina Nostre Marques, que baseou a sua decisão numa disposição do Marco Civil [7], a carta dos direitos da Internet no Brasil. A lei estabelece regras sobre temas como neutralidade da rede, privacidade, retenção de dados e responsabilidade dos intermediários, entre outras questões, e foi aprovada pela Presidente Dilma Rousseff em abril de 2014.

O Marco Civil também permite às autoridades estaduais cominar sanções a empresas estrangeiras de Internet que se recusem a cumprir a legislação brasileira. Como referido no Artigo 12 da lei, as autoridades podem impôr advertências, multas e suspensão temporária de serviços ou atividades de uma empresa. Essas penalidades podem ser implementadas somente mediante aprovação de um juiz.

O Artigo 23 da lei também prevê que o juiz deverá adotar todas as medidas necessárias para proteger a privacidade dos utilizadores que estão a enfrentar uma investigação criminal.

O CEO do Facebook, Mark Zuckerberg, lamentou a decisão. “Estou chocado que nossos esforços em proteger dados pessoais poderiam resultar na punição de todos os usuários brasileiros do WhatsApp pela decisão extrema de um único juiz”, postou ele hoje na sua página pessoal.

Os especialistas debatem se a punição é adequada ao crime

Francisco Brito Cruz, diretor do centro de pesquisa Internet Lab situado em São Paulo, questiona se a medida foi proporcional às necessidades dos investigadores — em outras palavras, será que o WhatsApp agiu suficientemente mal para merecer uma resposta tão extrema do governo? É difícil saber, diz ele, uma vez que o processo está a ser conduzido em segredo. Ele declarou ao Global Voices por e-mail:

Por serem investigações que correm em segredo, é impossível saber qual foi exatamente a postura da empresa ou seus motivos para não cumprir as ordens judiciais. Podem ser justos ou não, podem ter a ver com questões técnicas ou com posturas da empresa.

Se bem que se pode debater sobre as justificações da empresa por ter ocultado os dados do utilizador, é evidente que as ações do WhatsApp foram uma violação da Lei, diz Brito Cruz:

[A necessidade de uma ordem judicial] garante que a autoridade de investigação (polícia, Ministério Público) não rompa com o sigilo sem um crivo de um juiz. Se o WhatsApp recebeu uma ordem que passou por esse crivo e não a cumpriu injustificadamente ele desrespeitou a legislação brasileira, não só o Marco Civil.

Mas outros especialistas afirmam que ao ordenar aos prestadores de serviços de Internet (ISP) para bloquear o tráfego de uma aplicação específica, o juiz está a violar o princípio de neutralidade da Internet do Marco Civil, que exige igualdade de tratamento de plataformas e serviços por parte dos provedores de telecomunicações.

O fundador do Instituto Beta para Internet e a Democracia, Paulo Rená, numa entrevista de fevereiro 2015 sobre uma tentativa similar de um juiz de suspender o WhatsApp, afirmou que o Artigo 12, mesmo prevendo a suspensão de uma aplicação, não autoriza que uma ordem judicial seja direcionada para os ISPs. Rená esteve diretamente envolvido na redação do Marco Civil.

Uma visão semelhante é a de Gustavo Gindre, do coletivo para o direito à comunicação Intervozes, que num post de Facebook [8], comparou o bloqueio do WhatsApp ao bloqueio dos serviços bancários via Internet:

Pra mim, a decisão da juíza é plenamente motivada, mas equivocada. Equivocada porque havia outros caminhos a serem seguidos, e que implicassem em prejuízos ao Facebook (dono do WhatsApp), sem que fosse necessário tirar o serviço do ar e prejudicar seus usuários. Como li, seria como tirar o sistema financeiro do ar porque bancos estão se negando a entregar informações de seus clientes envolvidos em delitos. Ora, taca uma multa pesada.

Francisco Brito Cruz, no entanto, tem uma opinião diferente sobre o Artigo 12:

As operadoras de telefonia não podem bloquear ou filtrar o tráfego de aplicativos de forma discricionária a partir de seus interesses, mas isso não impede que a Justiça determine medidas como essa. É uma sanção inclusive prevista na mesma lei que prevê a neutralidade. O artigo 12 fala em sanções aplicáveis a provedores que agiram em descumprimento da legislação brasileira, ou seja, de qualquer ordem judicial que a esteja aplicando.

O caso também pôs em ressalto o dilema que existe entre a soberania de um país e as empresas de Internet transnacionais. Como Gindre postou na sua página do Facebook:

Como lidar com empresas que atuam na Internet em todo o planeta, mas possuem seus servidores instalados em poucos países e se recusam a colaborar com a justiça brasileira? Qual o limite da soberania nacional aplicada ao mundo transfronteira da Internet?

Foi o lobby das companhias telefónicas?

No início muitos pensaram que o bloqueio tinha algo a ver com a retórica agressiva das empresas de telecomunicações brasileiras na tentativa de regulamentar os serviços de Internet como WhatsApp e Netflix. Todavia, os especialistas já esclareceram que elas não estão envolvidas neste caso específico.

Em agosto, Amos Genish, CEO da Vivo [9], a maior operadora de telecomunicações brasileira, declarou que o WhatsApp é “pirataria pura” e defendeu a sua subordinação ao órgão regulador das telecomunicações do país, a ANATEL. “Eles usam os nossos números telefónicos para enviar mensagens gratuitas”, disse ele à Folha de S. Paulo na altura.

No entanto, outras duas operadoras brasileiras estabeleceram parcerias com o WhatsApp para oferecer o uso gratuito da aplicação aos seus clientes — uma prática conhecida como zero-rating [10]. Segundo os grupos de consumidores e para os direitos da Internet, isso viola o princípio de neutralidade da Internet do Marco Civil, que ainda aguarda regulamentação detalhada sobre acordos do tipo.

Apesar de alguma animosidade, em decisões judiciais passadas semelhantes os ISPs brasileiros têm atuado em favor do WhatsApp. Em fevereiro, um juiz do estado de Piauí [11] solicitou a suspensão do WhatsApp depois de a empresa se ter recusado a colaborar com investigações policiais relacionadas com pornografia infantil. Duas operadoras de telecomunicações, a Claro e a Embratel, apresentaram um recurso com o qual um juiz do tribunal de justiça sucessivamente concordou, e a app nunca foi tirada do ar.