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‘O Rio é doce, a Vale é amarga': lama tóxica despejada por mineradora no Brasil chega ao Oceano Atlântico

Categorias: América Latina, Brasil, Desastre, Meio Ambiente, Protesto, Saúde
Linhares (ES) - A lama vinda das barragens da Samarco com rejeitos de mineração seguem ao longo do leito do Rio Doce em direção à sua foz, localizada em Regência, Linhares (Fred Loureiro/Secom ES) [1]

A lama vinda das barragens da Samarco com rejeitos de mineração chegou à foz do Rio Doce, localizada em Regência, Linhares, Espírito Santo. Foto: Fred Loureiro/Secom ES, uso permitido

Quando o poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade escreveu Lira Itabirana [2], em 1984, certamente não imaginou estar entoando uma profecia. No dia 5 de novembro, o desabamento de uma barragem da mineradora Samarco [3], controlada pela Vale (Brasil) e BHP Billiton (Austrália), despejou uma avalanche de 62 bilhões de litros de rejeitos de minério de ferro sobre a bacia do Rio Doce, na região Sudeste do Brasil. “Antes fosse mais leve a carga”, dizia Drummond.

Após percorrer mais de 600 km, causando transtorno a diversas cidades banhadas pelo rio, a lama desaguou no Oceano Atlântico neste fim de semana [4].

E se o impacto da lama no leito do Rio Doce já era extremamente preocupante, especialistas alertam que os danos no ecossistema marinho podem ser ainda maiores, já que este é mais vulnerável do que o terrestre. O biológo André Ruschi, diretor da escola Estação Biologia Marinha Augusto Ruschi, no Espírito Santo, acredita que os danos possam se equiparar à “dizimar o Pantanal” [5].

A foz do Rio Doce é próxima da região de berçário das tartarugas-de-couro, a maior e mais rara espécie de tartaruga da costa brasileira. O timing não podia ser pior: novembro é a época de reprodução destas tartarugas. O Projeto Tamar [6] tomou a iniciativa de retirar os ninhos do local, mas não se sabe qual será o efeito no longo prazo, já que a área poderá ser contaminada pela lama e as tartarugas voltam sempre ao mesmo lugar para pôr seus ovos, ano após ano.

Cronologia de um ecocídio

A barragem que se rompeu, chamada de “Fundão”, está localizada no leste do estado de Minas Gerais, nas imediações da cidade de Mariana. Em seus arredores está o pequeno povoado de Bento Rodrigues, de 600 habitantes, que foi totalmente soterrado pela avalanche tóxica e corre o risco de desaparecer do mapa. Sete pessoas morreram e 12 estão desaparecidas, nove das quais são funcionárias da Samarco.

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Peixes mortos na beira do Rio Doce com a passagem da lama tóxica. Foto: Apurina Krenak/Facebook

A lama seguiu o curso do Rio Doce implacavelmente, atingindo outras cidades e chegando até o estado do Espírito Santo. Ao todo, mais de 800 mil pessoas [8] ficaram temporariamente sem água nos dois estados.

A Samarco/Vale chegou a entregar 250 mil litros de água em caminhões-pipa para a população da cidade mineira de Governador Valadares, mas logo foi constatado que a água continha alto teor de querosene [9] e era imprópria para consumo.

Esta não foi a única ação atropelada da empresa desde o dia 5 de novembro. Na semana após o rompimento da barragem, a Samarco deu uma coletiva de imprensa afirmando categoricamente que a lama não é tóxica, mas duas análises [10] feitas pelas prefeituras das cidades de Governador Valadares e de Baixo Guandu detectaram alto teor de ferro e metais pesados [8], como o mercúrio, que é extremamente nocivo à saúde.

Especialistas explicaram [5] que mesmo que a composição dos rejeitos em si não tenha elementos tóxicos, a lama funciona como uma “esponja” e traz para o rio outros poluentes.

 

a cidade de Barra Longa MG fotos dos transtornos causados pelo mar de lama tóxica pelo rompimento da barrragem de Rezidos,fotos do Sr Antonio Pedro da Costa marador Atingido pelos Rezidos da Barragem [11]

Morador da cidade de Barra Longa, atingida pela lama. Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil CC 3.0

O governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel, do Partido dos Trabalhadores, deu uma coletiva de imprensa na própria sede da Samarco [12], defendendo a empresa e pedindo cautela antes de se apontar culpados. A postura do governador  suscitou críticas da população. Fabrício Costa, que é de Minas Gerais, comentou em sua página do Facebook [13]:

Alguém imagina, após o desastre em Fukushima, o Primeiro-Ministro japonês, Shinzo Abe, indo até a sede da empresa que administra a usina nuclear, e de lá conceder uma entrevista dizendo que a empresa tem feito a sua parte para amenizar os danos às vítimas e ao meio-ambiente? […]

Da mesma maneira, como postou Maurício Caleiro, “imaginem o Obama na sede da Exxon, assegurando que a empresa está tomando todas as atitudes?” […]

Pois foi isso que aconteceu no meu estado. O Governador Fernando Pimentel, fazendo as vezes de relações públicas da empresa, vai até a Samarco e de lá dá uma entrevista coletiva dizendo que a mesma empresa que causou esse ecocídio está fazendo de tudo para amenizar os danos e que “não podemos apontar culpados, sem uma perícia técnica mais apurada.

A relação promíscua entre empresa e Estado é ainda mais evidente no local da tragédia. A imprensa brasileira está com acesso aos locais atingidos restrito, ou controlado [14] pela própria Samarco/Vale. Os moradores dos vilarejos atingidos foram removidos pela empresa para hotéis da região, o que também dificulta o acesso da imprensa, já que os horários de visita são controlados. Todos os trabalhos de recuperação da região também são feitos pela Samarco/Vale, que até agora não explicou as causas do acidente.

O Governo Federal estabeleceu uma multa à Samarco de R$ 250 milhões. Em 2014, a empresa registrou faturamento de R$ 7,6 bilhões [15].

É o fim do Rio Doce?

O desastre de Mariana já está sendo apelidado de “Fukushima brasileiro”. As imagens impressionantes da devastação, a falta de respostas sobre as causas do acidente e a passividade do Governo Federal e de Minas Gerais deixaram a população consternada e revoltada. 

O pequeno vilarejo de Bento Rodrigues, do qual a maioria dos brasileiros nunca havia ouvido falar, viu-se no centro do debate nacional sobre a aparentemente falida gestão ambiental brasileira. Um antigo vídeo mostrando a vida no local antes da tragédia circulou no Facebook na última semana:

O vídeo suscitou o comentário da colunista do jornal O Globo Cora Ronai, publicado em seu Facebook [16]:

Penso nas vidas que já não existem, nas vidas delas e nas vidas de tantas outras pessoas afetadas por esta tragédia. Penso nos vilarejos pequenos de que nem estamos ouvindo falar, nos bichos, nas modas de viola, nas tardes desaparecidas, no sossego que nunca mais, e sinto uma tristeza enorme, uma raiva profunda e uma vergonha indescritível por viver num país tão negligente e irresponsável.

A lama tóxica contaminou o solo e a água da bacia do Rio do Doce, matando grande parte da fauna e da flora em seu caminho. Biólogos e ecologistas temem que a lama altere o curso do rio e a sua fauna para sempre, já que a lama deve se sedimentar no rio, cimentando seu leito e alterando a composição da água. Teme-se que espécies endêmicas da região tenham sido extintas.

O biólogo Maurício Ehrlich afirmou à Folha de S. Paulo [17] que a lama pode transformar as margens do rio em “desertos de lama” e que a recuperação do solo pode levar centenas de anos (tempo necessário para a formação de um novo solo).

Matança de peixes no rio Doce [18] from Luiz Carlos Azenha [19] on Vimeo [20].

Mas se as autoridades brasileiras demonstraram falta de liderança para amenizar os impactos do desastre, a população não tardou em tomar iniciativas. Moradores, pescadores, escoteiros e profissionais da biologia armaram operações “arca de Noé”, retirando animais e plantas do rio na tentativa de salvar parte da fauna e da flora antes da chegada da lama. Os lugares atingidos também receberam doações de água de cidades vizinhas.

Operação “Arca de Noé”: Voluntários recuperam espécies do Rio Doce antes de rejeitos tóxicos chegarem.

 

O Grupo Independente para Análise de Impacto Ambiental (GIAIA) criou um grupo no Facebook para mobilizar um mutirão de cientistas cidadãos [24], orientando a população sobre os protocolos de coleta de amostras da água do rio, para posteriormente de analisar de maneira independente a sua qualidade.

O GIAIA também lançou um crowdfunding [25] para bancar os custos de um estudo independente sobre os impactos ambientais causados pela lama. Em poucos dias, o grupo arrecadou mais de R$ 70 mil, quase 50% acima da meta original.

Mas, apesar dos esforços cidadãos para mitigar os impactos, a população frisa que é fundamental punir os culpados pela tragédia: diversas petições online [26] estão circulando para exigir da empresa e do governo justiça para as vítimas, e a hashtag #NãoFoiAcidente têm circulado nas redes sociais nas últimas semanas.

#NãoFoiAcidente

O estado de Minas Gerais não leva esse nome à toa: desde os tempos coloniais, a atividade mineradora foi crucial para a renda pública, o que gerou uma relação de dependência entre estado e empresas extrativistas.

Essa relação é ainda mais evidente nos municípios próximos às minas. Cerca de 80% da receita tributária de Mariana [27], por exemplo, vêm da mina de Germano, de propriedade de Samarco. Entretanto, o governo do estado de Minas conta com apenas quatro fiscais para mais de 700 barragens de resíduos. Segundo um membro do Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), Minas Gerais tem ao menos 50 barragens em situação de alerta com risco de rompimento [28].

No dia 18, a empresa reconheceu que outras duas barragens na região, Santarém e Germano, têm risco de rompimento [29]. A barragem de Germano é a maior delas e a que está em estado mais crítico.

Mariana (MG) - Distrito de Bento Rodrigues, em Mariana (MG), atingido pelo rompimento de duas barragens de rejeitos da mineradora Samarco (Antonio Cruz/Agência Brasil) [30]

Distrito de Bento Rodrigues, em Mariana (MG), destruído após enxurrada de lama da mineradora Samarco. Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil CC 3.0

jornal do Instituto de Artes e Comunicação Social da UFF [31] relembrou que um laudo técnico de 2013, elaborado a pedido do Ministério Público de Minas Gerais, já alertava para os riscos do rompimento das barragens da Samarco.

O mesmo jornal apontou o envolvimento da BHP Billiton em um desastre semelhante na Papua Nova Guiné [32] nos anos 1980, em que bilhões de litros de rejeitos de mineração foram despejados no rio Ok Tedi, afetando cerca de 50 mil pessoas.

A Vale, uma das controladoras da Samarco, também não é uma pequena empresa qualquer. É a terceira maior mineradora do mundo, com operações em cinco continentes. Antes uma empresa estatal, foi privatizada em 1997 pelo governo Fernando Henrique Cardoso em um processo permeado de irregularidades nunca investigadas. [33]

Apesar das duas empresas, em teoria, terem know how quanto ao gerenciamento desse tipo de catástrofe, elas vêm sendo acusadas de usar a Samarco como escudo, tentando distanciar-se da mídia após a tragédia.

Acidente ou crime, a dor e impacto na população são evidentes. No minidocumentário “Doce Rio”, do morador de Governador Valadares Caíque Castro, assegura que, “em meio a tudo que estamos passando, a fé não pode faltar”.