Brasil: Foto de imigrante haitiano tomando banho recebe prêmio e gera polêmica

Pico de chegada de migrantes a São Paulo deixou centros de acolhida sobrecarregados. Crédito: Laura Daudén/ Conectas.Org/Fotos Públicas (29/04/2014)

Pico de chegada de migrantes a São Paulo deixou centros de acolhida sobrecarregados.
Crédito: Laura Daudén/ Conectas.Org/Fotos Públicas (29/04/2014)

O Prêmio Vladimir Herzog é considerado um dos mais importantes no reconhecimento dos direitos humanos no jornalismo brasileiro. Realizado com apoio da ONU, seu nome é uma menção ao jornalista que foi morto pela ditadura brasileira, em 1975. Mas, neste ano, uma das escolhas gerou polêmica e levantou questionamentos sobre a responsabilidade social da atividade jornalística.

O trabalho premiado na categoria fotografia foi uma imagem feita pelo fotógrafo Ronny Santos de um haitiano tomando banho de forma improvisada nas dependências da Missão Paz, organização da Igreja Católica em São Paulo, em maio deste ano. Publicada nos jornais Agora e Folha de S. Paulo, dois dos maiores do país, a imagem gerou indignação de imigrantes e organizações envolvidas com a questão migratória.

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Imagem de haitiano foi feita em maio no banheiro da Missão Paz, na época sofrendo com superlotação de migrantes. Em outubro, a fotografia recebeu o prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos. Imagem: ARFOC-SP/Divulgação

Logo após a publicação da foto, a Missão Paz, dirigida pelo padre italiano Paolo Parise, divulgou uma nota de repúdio ao que considerou “um jornalismo sensacionalista”:

Algumas reportagens se aproveitam dessa situação para invadir a privacidade alheia, expondo os migrantes sem sua autorização de forma que as imagens dessas pessoas acabam se tornando um produto a ser comercializado de maneira totalmente desumana. O objetivo da mídia em meio a essas crises é pressionar o Estado para tomar uma atitude, e não constranger aqueles que mais precisam de assistência.

A foto foi feita em um contexto específico: na época, migrantes de diversas nacionalidades – haitianos, em sua maioria – chegavam ao Brasil por meio do estado do Acre, que faz fronteira com Peru e Bolívia. Sem estrutura adequada e com pouca ajuda do governo federal, o governo acreano decidiu enviar os migrantes em ônibus para outros estados, entre eles, São Paulo.

Entidades da sociedade civil que atuam na assistência à população migrante em São Paulo tiveram grande dificuldade em atender a essa demanda. A Missão Paz chegou a abrigar migrantes em colchonetes dentro de um auditório por falta de espaço.

Com o anúncio da imagem entre os escolhidos para o Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos deste ano, a Missão Paz e a Organização Haitiana de São Paulo chegaram a pedir à Comissão Organizadora do prêmio que reconsiderasse a escolha.

Em carta aberta entregue à Comissão, a Organização Haitiana argumentou:

Comentamos aos jornalistas e fotógrafos ‘se gostariam que alguém entrasse em sua casa e fizesse fotos enquanto tomavam banho’. Conversamos com os haitianos que estavam no salão da igreja quando o fotógrafo bateu as fotos. Ele não pediu autorização. Muito mal educado, ele entrou no banheiro e fez as fotos. O haitiano foi embora de São Paulo com muita vergonha. Estamos tristes como organização e como haitianos.

No mesmo documento, os haitianos alegam que nenhum jornal ou emissora de televisão deu espaço ao repúdio feito pela comunidade.

Ainda assim, a Comissão Organizadora do prêmio optou pela manutenção da escolha. Em entrevista ao blog MigraMundo, a comissão justificou sua decisão:

Entendemos que as informações sobre as instalações de emergência, e alegações sobre o constrangimento do fotografado e da comunidade haitiana apontados pelo Padre não retiram a importância da fotografia em termos de denúncia pública de um problema social. Concluímos que houve esforço na tentativa de preservar a imagem do fotografado, e neste caso, os danos à sua imagem e dos haitianos aludidos pelo Padre Paolo seriam menores do que aqueles causados pela não valorização ou supressão de informação sobre uma situação de grande relevância nacional e global, que é a falta de condições de instituições estatais e sociais para recepcionar os imigrantes.

Já o autor da imagem, o fotógrafo Ronny Santos, alegou, também em entrevista ao MigraMundo, que teve permissão do haitiano fotografado para fazer as imagens:

“Em nenhum momento o personagem faz menção de proibir as fotografias ou usar as mãos ou os braços para indicar que não quer ser fotografado. Simplesmente continua tomando seu banho sabendo que as fotografias estavam sendo tiradas. Depois disso, saí e o haitiano continuou se lavando”.

Ronny considera ainda que, mesmo se sentindo chocado diante da imagem, tinha o dever de fazer a foto.

“Entendo a posição das entidades e entendo as críticas, mas o desrespeito estava acontecendo e eu, profissionalmente, tive que fotografar”.

Mas os argumentos do fotógrafo e da comissão não convenceram a Missão Paz e outros envolvidos no acolhimento e orientação de migrantes. Além de uma nova nota de repúdio, uma petição pública foi lançada pela entidade como forma de obter apoio e protestar contra a escolha da foto.

“Tal premiação está abrindo um perigoso precedente de que mais importa uma foto em si do que os direitos humanos do fotografado. Nesse sentido, é possível destacar diversos outros trabalhos fotográficos que contribuem para a função social da mídia de informar e sensibilizar a população e o governo para a causa das imigrações, sem denegrir e violar direitos humanos”.

O comunicador boliviano Antonio Andrade, responsável pelos portais Bolívia Cultural e Planeta América Latina, também criticou a publicação da foto:

“Nossas dores não podem ser utilizadas como ferramenta de humilhação ou desvalorização do ser humano! O contexto deve ser mais profundo e menos banal! Como comunicador, acredito que a ética do profissional estará sempre à frente do comunicador, que deve ter seus valores focados na humanização da informação e nunca na desmoralização da mesma”.

 

Rodrigo Borges Delfim é editor do blog MigraMundo, mencionado nesta matéria.

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