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Entenda o que está por trás da ‘lei antiterrorismo’ que está tramitando no Brasil

Categorias: América Latina, Brasil, Direitos Humanos, Lei, Liberdade de Expressão, Mídia Cidadã
35º Encontro da FENED (Federação Nacional dos Estudantes de Direito), em Brasília, 24 de julho de 2014. Manifestação contra a criminalização dos movimentos sociais. Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado/Flickr CC-BY-2.0

35º Encontro da FENED (Federação Nacional dos Estudantes de Direito), em Brasília, 24 de julho de 2014. Manifestação contra a criminalização dos movimentos sociais. Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado [1]/Flickr CC-BY-2.0

A Câmara dos Deputados do Brasil aprovou em plenário na semana passada o texto base [2] do Projeto de Lei 2016/2015 [3], que tipifica o crime de terrorismo no país.

Segundo o projeto, terrorismo é a prática, por um ou mais indivíduos, de atos por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz e a segurança pública e prevê penas de 12 a 30 anos de prisão. Antes de ser promulgada, a lei ainda precisa ser aprovada no Senado Federal.

O texto aprovado retirou do projeto original a palavra “ideologia” dentre as motivações desses atos, assim como a finalidade de “intimidar o Estado” dos seus objetivos.

O projeto também tem uma cláusula excludente, determinando que “manifestações políticas, sociais e sindicais, movidas propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender ou buscar direitos , garantias e liberdades individuais” não podem ser classificadas como terrorismo.

Ainda assim, ativistas defensores da liberdade de expressão e dos direitos humanos acreditam que a linguagem é vaga e pode dar margem para criminalizar movimentos sociais e protestos. Para o [4] advogado Patrick Mariano [4], integrante da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (Renap), tudo vai depender da interpretação do poder judiciário e da influência da mídia:

O filtro que será realizado para determinar se tal conduta é terrorismo será dado por delegados, promotores, juízes é claro, pela mídia.

Pedro Abramovay, diretor para a América Latina da Open Society Foundation, alerta que em muitos países do mundo esse tipo de lei serve para prender opositores ao regime vigente [5]:

Causar dano ao patrimônio privado em uma manifestação, por exemplo, um crime de menor potencial ofensivo, pode levar para à prisão, como terroristas, não apenas quem causou o dano, mas quem organizou a manifestação. E isso é muito grave.

 

A deputada federal do PCdB-RJ, Jandira Feghali, também se opõe [6] ao projeto de lei:

Uma manifestação que impeça que as pessoas cheguem ao trabalho é terrorismo? Incendiar um ônibus por protesto de crime de Estado é terrorismo? Saquear um supermercado é crime, mas pode ser um crime de fome, é terrorismo? Ocupação de moradia de prédio abandonado é crime de terrorismo? Com o nível de generalização deste texto, tudo cabe.

 

Rafael Custódio, coordenador de Justiça da ONG Conectas, lembra que, em 2003, uma lei similar no Chile [7], remanescente da ditadura de Pinochet, foi usada para encarcerar líderes comunitários da etnia Mapuche, que protestavam por autonomia sobre seu território ancestral. Esse caso levou o Chile a ser condenado [6] pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.

O projeto tramitou na Câmara dos Deputados em regime de urgência, algo que também foi questionado por alguns políticos e ativistas. Nesse vídeo [8], o deputado Federal Edmilson Rodrigues lembra que, por conta desse regime, o projeto não passou por nenhuma das comissões permanentes da Câmara dos Deputados.

Reconheço a importância de regular as atividades do Estado em relação aos crimes de terrorismo. Mas por que tanta pressa? Por que nenhuma audiência pública foi realizada para debater o tema? Por que nenhum jurista sério foi ouvido para falar sobre o tema?

Além disso, especialistas chamam a atenção para o fato de todos os crimes tipificados na lei antiterrorismo já estarem previstos no código penal brasileiro. A Lei 12.850/2013 [9], que tipifica organizações criminosas, por exemplo, prevê penas para eventuais atos terroristas praticados em solo brasileiro.

Já a Lei nº 7.170/83 artigo 20 [10] da Lei de Segurança Nacional promulgada em 1983, pelo então presidente militar, o general João Batista Figueiredo, prevê sentenças que vão de três anos a dez anos de prisão para crimes que “lesem a soberania nacional”. Inclusive, a sua revogação foi recomendada [11]no relatório final da Comissão Nacional da Verdade [12] — grupo investigativo criado em 2011 para apurar graves violações de direitos humanos ocorridas no período da ditadura militar no Brasil (1964-1985). 

Pressão dos Estados Unidos?

Diferentes fatores podem ter exercido influência na aprovação desse projeto de lei, segundo alguns especialistas.

Entre eles estão os protestos contra a Copa do Mundo de 2014, sediada pelo Brasil. Durante um protesto em fevereiro do ano passado, Santiago Andrade [13], cinegrafista de uma rede de televisão, faleceu após ser atingido na cabeça por um rojão disparado por manifestantes.  Logo após esse incidente, a pressão para uma lei antiterrorismo ganhou força no país e um outro projeto de lei antiterrorismo apresentado em 2013 [10] voltou a ser discutido no Senado.

Na época, movimentos sociais alertaram [14] que setores conservadores da política estavam usando a morte do cinegrafista para asfixiar os protestos no Brasil.

O novo projeto aprovado na semana passada não parece ter relação direta com esse episódio, mas sim com a pressão de uma organização dos Estados Unidos para que o Brasil adote uma legislação do tipo. Pedro Abramovay da Open Society explica [5] em um texto para a página Quebrando o Tabu:

Muitos vão imaginar que uma medida como essa, no contexto brasileiro, faz parte da agenda conservadora do Legislativo, liderado por Cunha. Não. Trata-se de um projeto do Executivo. Um projeto que tem como principal patrocinador o Ministro da Fazenda, Joaquim Levy. Para entender por que Levy insistiu nesse projeto, precisamos voltar alguns anos no tempo.

Após o 11 de setembro, um pânico legislativo tomou conta de muitos países. Liderados pelos EUA de Bush, legislações penais foram endurecidas para dar respostas firmes ao terrorismo. […]

Na esteira desse processo, mesmo países que nunca foram alvos de atentados adotaram legislações duríssimas contra o terrorismo. O Brasil conseguiu, na época, resistir a pressões para adotar este tipo de legislação. Avançou de forma firme no combate à lavagem de dinheiro, à corrupção e às organizações criminosas, criando leis bastante avançadas em comparação com outros países. Mas não entrou na onda de usar o terrorismo como justificativa para restringir direitos.

O mundo mudou desde 2001.Entretanto, algumas estruturas burocráticas internacionais que ganharam força durante a era Bush continuam exercendo poder sobre países para tentar aprofundar a agenda já ultrapassada. Uma dessas estruturas é o FATF (Financial Action Task Force) também conhecido pela sigla francesa GAFI. Esse grupo, criado para aprimorar a cooperação internacional no combate à lavagem de dinheiro, ganhou superpoderes em 2001 ao se tornar também responsável por medidas financeiras de combate ao terrorismo.

O FATF fez uma série de recomendações para os países e publica uma lista negra de países que não as cumprem. Estar na lista negra pode afetar seriamente o crédito de um país.

Durante o governo Lula, burocratas do FATF sempre tentaram pressionar o Brasil para criar uma legislação específica para criminalizar o terrorismo. […] Quando Levy assumiu a fazenda, os burocratas do FATF passaram a atacar de novo. A agenda é absolutamente ultrapassada, mas mesmo assim, eles aterrorizaram o novo ministro da Fazenda, dizendo que haveria risco de rebaixamento do Brasil, caso não se aprovasse a criminalização do terrorismo. O que não é verdade.

Levy, sob o impacto dessa pressão, convenceu a Presidenta e o Ministro da Justiça de o Brasil poderia entrar na lista negra por não adotar uma legislação nesses moldes e que a entrada lista poderia poderia ter consequências desastrosas para o crédito do país nesse momento. O governo decidiu, então, enviar o projeto ao Congresso.