Entenda o que são os “autos de resistência” no Brasil — e o que está sendo feito para acabar com eles

by Latuff

Mais de 70% de todas as pessoas mortas por assassinato no Brasil em 2012 eram negras. Charge de Carlos Latuff, CC BY-NC-ND.

Funciona assim: o policial mata um suposto “suspeito”, alega legítima defesa e que houve resistência a prisão. A ocorrência é registrada como “auto de resistência” e as testemunhas são os próprios policiais que participavam da ação. O crime quase nunca será investigado.

Este é o chamado “auto de resistência”, que, apenas no estado do Rio de Janeiro, no Brasil, vitimou 481 pessoas entre 2013 e 2014, de acordo com dados do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro obtidos pela Agência Pública.

Apesar de não haver uma lei específica que o defina, o auto de resistência tem amparo no artigo 292 do Código de Processo Penal, que diz: “Se houver, ainda que por parte de terceiros, resistência à prisão em flagrante ou à determinada por autoridade competente, o executor e as pessoas que o auxiliarem poderão usar dos meios necessários para defender-se ou para vencer a resistência, do que tudo se lavrará auto subscrito também por duas testemunhas”. O artigo, no entanto, não prevê quais são a regras para investigação em casos de excessos.

De acordo com o estudo “Autos de resistência: uma análise dos homicídios cometidos por policiais no Rio de Janeiro (2001-2011)”, produzido pelo sociólogo Michel Misse, do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o Ministério Público Estadual propôs o arquivamento 99,2% dos casos de auto de resistência neste período. Isso significa que a Justiça quase sempre acredita na versão da polícia, mesmo quando evidências mostram o contrário.

Michel Misse disse à Agência Pública que há uma “narrativa padrão” para os casos registrados como auto de resistência.

Os termos de declaração diziam que os policiais estavam em patrulhamento de rotina ou em operação, em localidade dominada por grupos armados, foram alvejados por tiros e, então, revidaram a ‘injusta agressão’. Após cessarem os disparos, teriam encontrado um ou mais ‘elementos’ baleados ao chão, geralmente com armas e drogas por perto, e lhes prestado imediato socorro, conduzindo-os ao hospital. Em quase todos os ‘autos de resistência’ é relatado que as vítimas morreram no caminho para o hospital, e os boletins de atendimento médico posteriormente atestam que a vítima deu entrada no hospital já morta”

Projeto de Lei que dá fim à prática sofre para ser aprovado

"Por que o senhor atirou em mim" perguntou Douglas Rodrigues ao PM que o matou.

“Por que o senhor atirou em mim?” perguntou Douglas Rodrigues ao PM que o matou. Reprodução/Facebook

Organizações de defesa de direitos humanos, movimentos sociais e alguns parlamentares pressionam que para que ocorra a votação e aprovação do Projeto de Lei  4471/12, que desde 2012 tramita na Câmara dos Deputados, no Brasil. Este é o projeto que visa acabar com os autos de resistência e por consequência a diminuição das mortes perpetradas por agentes do Estado.

O PL 4471/12 obriga: a preservação da cena do crime; a realização de perícia e coleta de provas imediatas; a abertura de inquérito para apuração do caso; veta o transporte de vítimas em “confronto” com agentes, que devem chamar socorro especializado; substitui os “autos de resistência” ou “resistência seguida de morte” por “Lesão corporal decorrente de intervenção policial” e “Morte decorrente de intervenção policial”. Essas duas últimas medidas já foram adotadas no estado de São Paulo.

O Deputado Federal pelo PT-SP, Paulo Teixeira, um dos autores da PL 4471/12 e notório defensor da ideia, comenta, em entrevista ao Ponte, o Projeto de Lei 4471/12:

Um estudo realizado no Rio de Janeiro demonstrou que 60% dos 12 mil autos de resistência da cidade foram meras execuções sumárias, onde não foram encontrados vestígios de pólvora nas mãos das vítimas e as vítimas foram atingidas por trás, quase sempre na nuca. Esses crimes são executados durante a “prestação” de “socorro” as vítimas, no trajeto até o hospital.

Segundo Alexandre Ciconello, Assessor de Direitos Humanos da Anistia Internacional, o PL 4471/12 cria mecanismos para controlar a letalidade policial:

No geral, o PL fortalece o direito à vida, à medida que orienta a conduta policial ao uso proporcional da força e busca responsabilização pelas condutas desviantes. O PL não acaba com o direito de defesa do policial frente a uma resistência armada, mas deixa claro que execuções arbitrárias e sumárias não serão toleradas. 

Entretanto, enquanto de um lado tantas pessoas militam e torcem pelo fim dos autos de resistência, de outro lado há aqueles que discordam ferozmente.

É o caso do Deputado Federal Jair Bolsonaro (PP-RJ), assumidamente avesso à qualquer medida de defesa dos direitos humanos. Bolsonaro é participante ativo do que é conhecido como “bancada da bala” na Câmara dos Deputados em Brasília — uma frente parlamentar linha dura, composta por políticos ligados a indústria das armas, ex-policiais e militares. A bancada da bala se tornou uma das maiores forças contra a aprovação da PL4471/12.

A bancada da bala na Câmara dos Deputados em Brasília. Da esquerda para direita, Alberto Fraga, Delgado Waldir, Jair Bolsonaro e Moroni Torgan. Reprodução/Facebook

A bancada da bala na Câmara dos Deputados em Brasília. Da esquerda para direita, os Deputados Federais Alberto Fraga (DEM-DF), Delegado Waldir (PSDB-GO), Jair Bolsonaro (PP-RJ), Delegado Eder Mauro (PSD-PA) Moroni Torgan (DEM-CE). Imagem: Reprodução/Facebook

Seus filhos, o Deputado Estadual Flavio Bolsonaro (PP), o Deputado Federal Eduardo Bolsonaro (PSC-SP) e o vereador do Rio de Janeiro Carlos Bolsonaro (PP) também se mostram totalmente contrários ao fim dos Autos de Resistência. Na mesma linha de pensamento está o vereador pelo PTB-SP Conte Lopes. Ex-capitão da ROTA (Rondas Ostensivas Tobias Aguiar (um dos braços da Polícia Militar de São Paulo), ele é conhecido como um dos maiores “matadores da PM de São Paulo.

Ele alega:

O policial que está fardado, de serviço, está agindo em legítima defesa. No meu tempo, o povo tinha segurança. Hoje os bandidos tomaram conta, matam policial e ninguém tem segurança. Nós estamos morrendo na frente da nossa família.

Em uma entrevista realizada pela rádio Câmara, o deputado federal João Campos do PSDB-GO, que também é delegado da Polícia Civil (e recebeu na campanha de 2010 40 mil reais em doações da indústria de armas, segundo reportagem da Agência Pública), disse que as “novas regras” com relação ao projeto de lei não devem ser tão rigorosas a ponto de inibir a ação policial.

A PL 4471/12 do ponto de vista “filosófico e conceitual” é “muito boa” por que se criam mais regras de controle em cima da atividade policial no aspecto operacional para garantir direitos individuais de quem está sendo abordado pela polícia, mas por outro lado cria mecanismos que amarram e amedrontam o policial durante a ação.

O PL 4471/12 é de 2012, mas vem sofrendo para ser aprovado. Ele seria votado no último dia 10 de dezembro, dia Internacional dos Direitos Humanos, mas foi tirado da pauta. O PL está pronto para votação no plenário — no site da Câmara dos Deputados, consta que sua situação atual é “pronta para Pauta no Plenário”.

O mesmo site lançou uma enquete onde a população pôde se pronunciar à respeito da PL 4471/12. Não menos que 72% dos respondentes disseram apoiar a permanência dos autos de resistência. Abaixo da enquete, algumas pessoas comentam: “Bandido bom é bandido morto” ou “fim do auto de resistência: NÃO! Direitos humanos para humanos direitos!”.

Aparentemente, no que depender da opinião pública, ainda não será o fim dessa prática.

Resultado da enquete feita pela Câmara dos Deputados, sobre o fim do auto de resistência.

Resultado da enquete feita pela Câmara dos Deputados, sobre o fim do auto de resistência.  

 

A polícia mais letal do mundo

Pinturas na frente da Igreja da Candelária, no Rio de Janeiro, em memória ao massacre de 1993. Foto: quentindelaroche/Flickr, CC BY-2.0

Pinturas na frente da Igreja da Candelária, no Rio de Janeiro em memória ao massacre de oito crianças e adolescentes em 1993. Foto: quentindelaroche/Flickr, CC BY-2.0

Um estudo realizado pelo Instituto Sangari mostra que entre 2009 e 2013 as polícias brasileiras mataram cerca de 6 por dia, todos os dias. Foram 11.097 homicídios cometidos pelo Estado registrado no período, mais do que a polícia norte-americana matou ao longo de 30 anos (11.090).

Desde os anos 90, são inúmeros casos notórios de assassinatos e chacinas cometidas pela Polícia nas periferias das cidades brasileiras. Entre eles, o episódio de 1993 que ficou conhecido como a “Chacina da Candelária”, onde oito menores moradores de rua, com idades entre 11 e 19 anos, foram assassinatos enquanto dormiam em frente a uma catedral no centro do Rio de Janeiro. No mesmo ano, na favela de Vigário Geral, 21 pessoas foram executadas por policiais encapuzados.

Em ambos os casos, vingança foi o principal motivo para os assassinatos à queima roupa — no primeiro, porque havia suspeita de que os garotos praticavam pequenos furtos; no segundo, para vingar a morte de quatro policiais na região.

Esse tipo de comportamento não parou nos anos 90. Entre casos recentes de assassinatos registrados como “autos de resistência”, e que são veementemente contestados por organizações da sociedade civil, estão o do pedreiro Amarildo, morto pela PM na favela da Rocinha (Rio de Janeiro), ou do garoto negro de 16 anos, Davi Fuiza, que desapareceu depois de ser levado pela PM em Salvador; do jovem de 17 anos, Douglas Rodrigues, baleado pela PM na Zona Norte de São Paulo.

É importante lembrar que a imensa maioria dos moradores de periferias e favelas no Brasil são negros — portanto, é essa a população que mais sofre com a violência no Brasil. O mesmo estudo do Instituto Sangari mostra que das 56 mil pessoas assassinadas no Brasil em 2012, 77% eram negros e 53% tinham entre 15 e 19 anos de idade. São esses números que estimularam a Anistia Internacional a lançar a campanha “Jovem Negro Vivo”, em novembro do ano passado.

Em um artigo intitulado “A violência no Brasil tem cor”, Átila Roque, Diretor Executivo da Anistia Internacional Brasil, argumenta que a população brasileira trata com indiferença o assassinato de jovens negros e pobres. Ele também traça um paralelo entre as mortes de Michael Brown e Eric Garner, nos EUA, as quais geraram inúmeros protestos pelo país, com a violência policial no Brasil. Mas acredita que as semelhanças param por aí:

No caso dos Estados Unidos, a morte desse jovem pela polícia provocou comoção e revolta, enquanto no Brasil raramente chega aos ouvidos da maioria da população. A sociedade convive com isso como se a morte violenta fosse o destino inevitável desses jovens. Não é.

Em dezembro do ano passado, foi organizado em São Paulo um protesto chamado “Ferguson é aqui”. Mais do que um ato de solidariedade com os negros norte-americanos, o objetivo era chamar a atenção para a realidade brasileira — em que jovens negros são sistematicamente assassinados pela polícia.

Ferguson. Comoção, indignação e mobilização. Foto por Jamelle Bouie (Flickr) CC BY - 2.0

Ferguson: Indignação e mobilização como nunca vistas no Brasil.
Foto: Jamelle Bouie/Flickr CC BY-2.0

Para o rapper e ativista Genival Oliveira Gonsalves, o GOG, na raiz do problema está o racismo velado que permeia as relações na sociedade brasileira. Ele disse em entrevista à Carta Maior:

O país construiu políticas públicas, aprovou medidas, e sancionou o Estatuto da Juventude. Em contrapartida, nunca se matou tantos jovens negros no país. A importância do investimento em cultura e educação é essencial. A maioria dos brasileiros não crê na existência de racismo no país. Um bom exemplo é a “segmentação dos temas”, a grande mobilização de artistas negros e negras para aprovação do PL 4471/12 e quase nenhum artista branco, do primeiro escalão, para um tema considerado vital para a maioria dos brasileiros. Mas quando o assunto é a PEC da Música, que reduz impostos, está todo mundo lá. O opressor é fisiológico, muda com as circunstâncias. Por isso, a lei é importante, mas também precisamos mudar a cultura do país.

9 comentários

  • Torcidas Espetaculares

    492 coitadinhos mortos injustamente no rio de janeiro, onde quase todos os bandidos são fiéis guardiões do estatuto do desarmamento. Graças a Deus esse é mais um projeto de caráter subversivo e inimigo do estado constituído que NÃO VAI PASSAR. Podem chorar, petralhas, porque aqui não é Bolívia, não é Venezuela e muito menos Cuba. Esse país preza pela sua liberdade e assim ele vai continuar sendo. VIVA AS NOSSAS FORÇAS ARMADAS QUE NOS SALVARAM DO PIOR NO PASSADO E UM VIVA HOJE A TODOS OS SENTINELAS DO POVO QUE NÃO IRÃO PERMITIR QUE A PÁTRIA CAIA NAS MÃOS DESTES PSICOPATAS DE CAMISETA VERMELHA!

  • Misael

    A polícia que mais mata mas faltou falar que é a que mais morre. A violência está em níveis elevados demais e tirar autoridade de policial não vai resolver, ao contrário. É o que tem sido feito há anos e o resultado está aí. Totalmente contra, e se olharmos bem que está a favor disso na sociedade e no Congresso perceberemos que para o bem do país que não é.

  • lol

    publique agora também as mortes cometidas por bandidos contra civis (pais de família, pessoas que não deviam nada e só morreram por causa de um celular). os direitos humanos só se mobilizam por bandidos. já os pais de família e os policiais, que saem às ruas todos os dias e arriscam suas vidas para garantir segurança à todos nós (inclusive aos que criticam a polícia) são vistos como um zé ninguém, no dia em que os direitos humanos condecorar um policial eu aplaudo de pé (mas nunca vi). e outra, cadê que os direitos humanos defendem os policias que matam um bandido para salvar a vida de um inocente. ainda bem que o PT saiu do poder.

  • Felipe

    Ninguém tem dó de bandidos, nem eu e nem você que está lendo esse comentário. Mas vamos falar a verdade: Quase ninguém tem empatia por moradores de rua, pedreiros, favelados e outros vagabundos; por isso apoiam os autos de resistência. Agora imagine a seguinte situação: Estou dirigindo o meu carro durante a madrugada e aparece um policial endividado e com raiva para me abordar, logo ele pede os meus documentos e do meu carro e ele verá que estão todos em dia, depois verá as condições do veículo, que também estão aceitáveis. E o que ele fará para me atacar? Cobrará suborno, mas eu não tenho dinheiro ou não quero pagar e ao ver que estou inflexível não pode me deixar ir embora pois poderei denunciar-lo. O que ele poderá fazer? Ele vai me executar, colocar drogas no meu porta-luvas, uma arma fria na minha mão e dizer que foi um ‘alto de resistência’. Afinal, ele era um traficante que tentou reagir. Legítima defesa.

  • Rebert

    A resistência a prisão o u simples condução é latente, perderam o respeito a autoridade. Quer discutir dois lugares, na delegacia e no judiciário.
    Pessoa de bem não teme revista, condução e prisão arbitrária.
    O que a esquerda pretende é acabar com a autoridade estatal , caos.

  • Marcus

    Acredito que deve existir o equilíbrio. Parece meio que óbvio dizer isso, mas veja bem, essa polícia que tanto mata, muito morre. Todos os autos de resistência devem ser rigorosamente investigados. Mas, a bem da verdade, sobre outro ângulo, há muitos bons profissionais que perdem suas vidas, fruto da violência. Não há que se transformar essa luta em ideologia de direita ou esquerda. Vida é vida e deve ser protegida. O sonho do oprimido é virar opressor. Há mortes camufladas nos autos de resistência? Sim. Há assassinato covarde desses profissionais? Também. Então, diante dessas duas situações, deve existir o equilíbrio, para que a justiça possa ser feita em nossa realidade.

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