Uma lata com um pequeno furo e fita isolante. Parece simples, mas é aí que reside o paradoxo. Para se fotografar com uma câmera digital, no automático, basta um clique. Mas a câmera pinhole, ancestral do processo fotográfico analógico, exige muito mais: uma boa dose de concentração e paciência, para começar, além de entender o fundamento básico da fotografia, que é o controle da luz. De resto, basta incentivo, imaginação e inspiração.
Ao menos é o que acredita o projeto “Mão na Lata”. A iniciativa consiste em distribuir câmeras pinhole a adolescentes de 12 a 18 anos do Complexo da Maré, conjunto de 16 favelas no Rio de Janeiro onde habitam cerca de 130 mil pessoas. Da confecção das câmeras, feitas a partir de latas de leite em pó, até a revelação dos negativos, tudo é feito pelos jovens participantes, que recebem o desafio de registrar o cotidiano de sua comunidade em preto em branco.
O Mão na Lata é uma iniciativa da fotógrafa Tatiana Altberg e desde 2003 oferece oficinas de fotografia artesanal e literatura para jovens da comunidade em parceria com a organização Redes da Maré. Mas foi só em 2012 que Tatiana conseguiu apoio da Petrobrás, via Lei Rouanet de Incentivo à Cultura, para tocar o projeto “Do artesanal ao digital”, no qual os estudantes puderam aprender também os princípios da fotografia digital. O projeto também incentivava os alunos a retratar locais citados na obra de Machado de Assis, escritor brasileiro que viveu no Rio de Janeiro no século 19, considerado um dos mais importantes nomes da literatura brasileira.
Um ano de atividades resultou no livro Cada Dia Meu Pensamento é Diferente, uma compilação do trabalho dos jovens lançado pela editora NAU em 2013.
No livro, Eliana Souza Silva, diretora da Redes da Maré, assina um texto em que reflete sobre o projeto:
Essa obra coletiva caracteriza-se por articular qualidade artística e impacto político. Afirma que os moradores da Maré criam e se (re)inventam todos os dias, como quaisquer cidadãos da polis. A iniciativa é parte do projeto maior da Redes da Maré, instituição que aposta em iniciativas que criem/estimulem experiências estéticas como parte fundamental da vida humana, numa região importante da cidade do Rio de Janeiro, a Maré. […] Tudo isso, reconhecendo esse processo como um direito que se negou historicamente a uma parcela da sociedade brasileira”
Tatiana Altberg e Luiza Leite, professora de literatura que colaborou no processo de elaboração do livro, explicam o que as inspirou na escolha do título:
O título do livro é um fragmento de um dos textos produzidos por um dos alunos do projeto. Queríamos um título capaz de ressaltar a qualidade cambiante do pensamento reflexivo, conquistado pelos alunos após um prolongado processo de criação.
O autor da frase em questão é Jonas Willami, de 17 anos, que deu a seguinte declaração na ocasião do lançamento:
Me deu mais paixão pela fotografia. Foi uma sensação muito boa, de ver a felicidade de todos aqui no lançamento, pois não é apenas um projeto, somos uma família. E a frase se encaixa perfeitamente no eixo da história que se passa o livro.
Tatiana Altberg também produziu um documentário sobre o projeto:
Também no livro, Ana Maria Mauad, professora associada do Departamento de História da Universidade Fluminense, reflete sobre o simbolismo e caráter atemporal das imagens:
O mundo que conhecemos com essas imagens atravessa os tempos, reunindo passado e presente – os Rios de Machado, do conflito, da pacificação, da vida das pessoas comuns nas suas fascinantes excepcionalidades.
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