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Outra vez, disparo de um policial militar acaba provocando morte “acidental” no Brasil

Categorias: América Latina, Brasil, Direitos Humanos, Guerra & Conflito, Mídia Cidadã, Protesto
A atriz e produtora cultural Luana Barbosa, morta durante uma blitz da polícia militar. Foto: Reprodução Facebook

A atriz e produtora cultural Luana Barbosa, morta durante uma blitz da polícia militar. Foto: Reprodução Facebook [1]

Fazia apenas um dia que Luana Barbosa tinha 25 anos [2], quando ela e o namorado passaram por uma blitz da polícia militar em Presidente Prudente, interior de São Paulo. O policial que os abordou tinha 23 anos de corporação. Segundo ele, o casal furou um bloqueio da polícia [3] e, por isso, ele teve de sacar sua arma. O disparo, que de acordo com o depoimento do policial foi acidental [4], atravessou o tórax de Luana. 

A atriz e produtora cultural estava a poucas horas da festa para comemorar seu aniversário mas não resistiu aos ferimentos [5] e morreu a caminho do hospital. O policial foi encaminhado ao presídio [6] onde deve responder por homicídio culposo, quando não há intenção de matar. O caso, no entanto, volta para a tão discutida pauta da violência e muitas vezes despreparo em abordagens da polícia militar:

No último ano, especialmente depois do desaparecimento do pedreiro Amarildo [8], na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, muitas histórias de acidentes começaram a surgir. São casos que levam a questionar se o treinamento militar [9], que forma a polícia das ruas, faz homens mais preparados para o confronto do que para abordagem.

Outras mortes

Em outubro de 2013, um disparo acidental saído da arma de um policial militar também causou a morte do jovem Douglas Martins Rodrigues [6], de 17 anos. Douglas foi atingido com um tiro no peito quando conversava com o irmão e o pai de um amigo na calçada, no final de um domingo. Em depoimento, o policial disse que a arma bateu na porta do carro e disparou sozinha. 

Em março de 2014, a morte de outro Douglas, um dançarino, no morro do Pavão-Pavãozinho no Rio de Janeiro, supostamente pelas mãos da polícia militar [10], também gerou protestos. 

Moradores acusam policiais de terem matado o dançarino. Segundo eles, houve um tiroteio na madrugada de ontem entre PMs (policiais militares) e traficantes. Douglas teria pulado um muro da creche para fugir do confronto e despencado de uma altura de sete metros. Mas familiares acreditam que o dançarino tenha sido agredido por PMs durante a confusão.

O caso da morte do Douglas de São Paulo ganhou espaço na mídia pelas manifestações que gerou [11], alguns moradores do bairro onde ele vivia chegaram a atear fogo em ônibus como protesto. O caso da morte do Douglas do Rio de Janeiro foi contado e debatido por ele fazer parte do elenco de um programa de televisão na maior rede do país, além do protesto realizado pedindo justiça ter terminado em duas mortes [12]. Nos dois casos, a mídia foi pautada por pressão da sociedade civil. 

A militarização ideológica

A despedida dos amigos e da família de Lua, como Luana era conhecida, foi um cortejo de palhaços. Ela, no caixão, também estava com o nariz pintado de vermelho. No desabafo de um dos amigos, o ator Tiago Munhoz, em entrevista ao site Ponte [4], ficou a questão:

não havia nenhuma denúncia, nem ocorrência que pudesse colocar a polícia em alerta e fazê-la reagir dessa forma truculenta. Isso demonstra um despreparo sem tamanho. Foi uma morte banal, um absurdo. Cabe a mim usar a arte para discutir o que aconteceu. Não sei o que posso fazer, mas eu vou fazer as pessoas refletirem.

Discutir despreparo envolve discutir o sistema do policiamento militar. No entanto, como lembra Maria Lucia Karam, em um artigo publicado no blog Abordagem Policial [14], falar sobre desmilitarização não se restringe apenas às polícias:

Sem o fim do paradigma bélico que dita a atuação do sistema penal, qualquer proposta de desmilitarização das atividades policiais será inútil.

Karam explica que as funções de uma segurança pública militarizada são “radicalmente diversas” à natureza civil, de defesa da sociedade e seus cidadãos. E conclui:

Não são apenas as polícias que precisam ser desmilitarizadas. Muito antes disso, é preciso afastar a ‘militarização ideológica da segurança pública”, amplamente tolerada e apoiada até mesmo por muitos dos que hoje falam em desmilitarização. A necessária desmilitarização pressupõe uma nova concepção das ideias de segurança e atuação policial que, afastando o dominante paradigma bélico, resgate a ideia do policial como agente da paz, cujas tarefas primordiais sejam a de proteger e prestar serviços aos cidadãos.

Ao ver a morte de Luana se somar a uma lista de acidentes, para quem fica, resta apenas fazer com que não tenha sido em vão. E seguir buscando o debate capaz de reavaliar a maneira como são as coisas.