Em outros tempos, o gol contra do brasileiro Marcelo seria o assunto mais polêmico do dia seguinte ao jogo de estreia na Copa do Mundo. Mas no Mundial de 2014, um fato que passou desapercebido para muitos dos estrangeiros que assistiam à transmissão do jogo de abertura, tornou-se um dos assuntos mais importantes na análise da partida, no Brasil: milhares de torcedores entoaram, em coro, um xingamento de baixo calão direcionado à Presidente Dilma Rousseff.

Na tribuna de honra da Arena Corinthians, presidente Dilma Rousseff ouve xingamentos da torcida.
A presidente não fez, como habitual neste tipo de torneio, o discurso de abertura proferido pelo chefe maior da nação. Há um ano, na Copa das Confederações, ela foi vaiada.
O jornalista Florestan Fernandes Jr chama atenção para outro fato pouco percebido: os diversos governadores de estados brasileiros não compareceram ao estádio:
Onde estavam ontem os políticos que festejaram a escolha do Brasil como sede da Copa do Mundo de 2014? (…) Onde estavam os prefeitos e governadores responsáveis pelas obras exigidas pela Fifa? Ontem, coube a uma única mulher receber toda a agressão de uma torcida rica e privilegiada que conseguiu ingressos para o jogo de abertura em São Paulo. Uma elite raivosa que não perde a chance de destilar seu ódio de classe, seus preconceitos e sua falta de educação. Parabéns, presidenta Dilma, você não se escondeu nos palácios da República como fizeram os governadores.
Os xingamentos direcionados à presidente, mais uma vez, dividiram o Brasil. Comentários frequentes nas redes sociais chamavam atenção para a quase completa ausência de negros nas arquibancadas do jogo, em um país em que mais de 50% da população se declarou “preta” ou “parda” no censo nacional em 2010 e onde, notoriamente, a maior parte dos pretos e pardos são também pobres.
O jornalista Bruno Torturra considerou a atitude dos torcedores no estádio uma prova de ingratidão:
a presidenta libera bilhões de reais para deixar os estádios bem ao gosto dos milionários. Topa que a FIFA gentrifique ao limite a venda de ingressos. Garante as Forças Armadas nas ruas para conter qualquer distúrbio que possa atrapalhar o tráfego ao Itaquerão. Bota o Ministério da Justiça para dar apoio a qualquer polícia militar que bote para quebrar em cima de movimentos sociais em busca de mais justiça econômica.
Bom… muita, muita, muita gente tem o direito de vaiar a Dilma. Mas, para mim, essa elite deitada em berço esplêndido que vaiou a presidenta não é politizada. É, antes de tudo, mal agradecida mesmo.
Para o jornalista Lino Bocchini, não se trata de uma questão de gratidão. Ele lembra que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva também precisou fazer concessões para ser eleito e garantir a governabilidade, mas que, naquele momento histórico, esta era uma postura estratégica. Segundo ele, agora não é mais:
não se justifica o número de concessões e agrados que ela se obriga a fazer para poderosos em geral, sejam eles do agronegócio, evangélicos fundamentalistas, banqueiros ou donos de redes de televisão. O quadro é outro, o país é outro. Ninguém mais, a não ser os delirantes que enxergam sombras de Chávez e Fidel embaixo da cama, acha que o PT vai colocar sem-tetos em seu apartamento ou implantar uma ditadura comunista no Brasil.
A elitização do futebol promovida pelo Partido dos Trabalhadores, no projeto da Copa do Mundo de 2014, teve seu preço: ao abandonar sua base eleitoral para contemplar o projeto da FIFA, que estica ao limite as desigualdades históricas do Brasil, a presidente Dilma perdeu seus apoios tradicionais, ao mesmo tempo que não conquistou o apreço de seus antigos críticos.
Para os manifestantes na rua, que sofriam forte repressão da polícia enquanto o jogo acontecia no estádio, o governo petista pecou não apenas por excluir o povo mais pobre dos estádios no Mundial, mas principalmente por não contemplar demandas históricas da esquerda. Alguns dos alvos frequentes nos protestos de rua desde o ano passado – a saúde e a educação públicas – são serviços raramente usados pelas classes mais ricas. Já o transporte público, que serviu de gatilho para as marchas populares de junho de 2013, é utilizado também por setores da classe média. Outro foco importante dos protestos, a violência policial, é mais sentida nas favelas do que nos bairros de classe média e alta.

Policiais revistam manifestante em protesto em São Paulo. O rapaz afirmou ter sido agredido por carregar panfletos com mensagens políticas. Foto: Marcela Canavarro
Mas, para a elite econômica brasileira, os pecados do governo petista são outros: consideram populistas o bolsa-família (embora o programa já tenha sido reconhecido pela ONU como referência importante no combate à pobreza) e a política de cotas em universidades públicas; reclamam do recente acesso de classes mais pobres a serviços outrora elitizados, como os aeroportuários; e afirmam que o PT prepara um golpe comunista no Brasil, embora os lucros bancários sejam recordes e as concessões à FIFA sejam enormes, tanto no plano econômico quanto no jurídico.
No dia seguinte à abertura da Copa, e em franca campanha eleitoral, Dilma Rousseff afirmou que não se deixará abater por agressões verbais, relembrando o período em que foi torturada durante a ditadura militar:
Quero lembrar que eu enfrentei situações do mais alto grau de dificuldade. Situações que chegaram ao limite físico. Não serão xingamentos que vão me intimidar e me aterrorizar. Eu não me abato e não me abaterei por isso. Podem contar que isso não me enfraquece.
A quatro meses das eleições presidenciais, a Copa do Mundo escancarou que a atual presidente e candidata à reeleição, Dilma Rousseff, está no limbo entre duas correntes opostas de descontentes, em um país continental e dividido.