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“A internet é um campo de batalha.” Assim é como ela é descrita em Cuba. Enquanto o Departamento de Estado dos Estados Unidos se gaba do livre fluxo de informação e conhecimento, as autoridades cubanos falam de uma guerra cibernética ideológica, conduzida pelos Estados Unidos contra Cuba e tudo o que ela representa. As revelações da última semana sobre o “ZunZuneo“, o Twitter cubano criado pela Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID, pela sua sigla em inglês)sugerem que os cubanos podem ter uma certa razão.
O telefone celular ZunZuneo, de pouca tecnologia, não propunha aos assinantes compartilhar informações, opiniões e crenças como eles quisessem? Não. Ele foi deliberadamente planejado para promover uma “mudança democrática” e estimular o começo imaginário de um aspirante à Primavera Cubana. Bem-vindo ao último capítulo na Guerra Fria Cuba-EUA, agora bem adiantada na sua sexta década.
De maneira similar a outras iniciativas tecnológicas americanas de “libertação” no exterior, este projeto resultou da falta de visão e da ideia condescendente sobre o que acontece quando as populações reprimidas obtêm as tecnologias de comunicação. Sabemos que os protestos sociais da Tunísia até a Ucrânia evoluíram não apenas da mensagem tweet-fests espontânea, mas da forte rede de ativistas que estavam trabalhando juntos há anos para provocar uma mudança em várias formas, on line ou não. Sim, a rede social teve seu papel, mas foi um catalisador para ação, não o criador orgânico de metas civis.
Não parece que a USAID tenha pensado nisto. No entanto, é só uma parte do que estava completamente errado com este programa.
O ZunZuneo foi concebido, implantado e promovido pelos agentes do governo americano e empresas terceirizadas, tudo sem o conhecimento das pessoas que ela pretendia ajudar. A plataforma não só deixou de oferecer qualquer transparência sobre sua origem, como também obteve os números dos celulares de meio milhão de cubanos sem o conhecimento ou consentimento deles. Isto teria representado uma parte considerável da população dos usuários de celular, que na época foi estimada em aproximadamente 2,2 milhões de pessoas (de uma população total de 11 milhões.)
Pior ainda, os operadores da ZunZuneo não só obtiveram estes números de telefone sem a licença ou conhecimento dos seus proprietários, eles também vigiaram o conteúdo das mensagens do assinante. Como a Associated Press escreve, “Nos bastidores, os computadores da ZunZuneo estavam… armazenando e analisando as mensagens dos assinantes e outras informações demográficas, incluindo gênero, idade, “receptividade” e “tendências políticas”. Desde então, a USAID tem acompanhado o caso com um blog e contestado diversas afirmações do artigo da AP, mas visivelmente não se referiu a nenhuma destas alegações.
A AP não indica se as mensagens eram particulares ou públicas, quais garantias de privacidade os usuários tiveram, e se as tiveram. E em certo grau, isto não importa. Conforme a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o programa ZunZuneo com certeza quase violou os direitos de privacidade dos assinantes.
É o mesmo tipo de comportamento que os Estados Unidos condena frequentemente em governos estrangeiros. Utilizar redes sociais como uma ferramenta para vigilância? Vimos isto antes! Veja o Paquistão, o Vietnã, a Arábia Saudita e quase todos os outros países que entraram na listados Inimigos da Internet dos Repórteres sem Fronteiras neste ano.
A única diferença é que a USAID afirma ter feito isso com objetivo de “promover os direitos humanos e a liberdade universal.”
Apesar de ser pouco clara o que o governo cubano sabia sobre o programa, existe uma forte chance das autoridades terem prontamente permitido que ele tomasse forma. O aparato da segurança do Estado cubano é firme, bem entrosado e pleno de consciência de qualquer coisa e de tudo que acontece através das redes de telecomunicações no país. Apesar de que seria impossível de provar, é viável os agentes de segurança usarem a rede como uma (entre muitas) maneira de controlar os meios de comunicação dos cidadãos.
Se admitimos que seja verdade, ela significaria que a ZunZuneo não só criou um portal para os agentes do governo americano escutarem facilmente as conversas dos cubanos, como também gerou uma oportunidade extra ao governo local para fazer o mesmo.
O discurso padrão nos Estados Unidos é que existe o embargo econômico em Cuba porque ele tem uma lamentável reputação sobre os direitos humanos. Há muito a ser falado a respeito. O embargo foi imposto bem antes do país ficar conhecido por suas violações sistemáticas dos direitos civis e políticos. Em 1960, Fidel Castro emitiu uma recusa formal da ajuda do governo americano e encerrou todos os contratos com empresas dos EUA as quais operaram tranquilamente — e obtiveram lucros enormes — no país durante a era Batista. Dois anos depois, John F. Kennedy assinou e decretou o embargo.
Entre os líderes políticos americanos, as pessoas que defendem o embargo são aquelas que ainda ganham, política e financeiramente, por manterem esta condição em vigor. Revelações como estas indicam que os direitos humanos dos cubanos são pouco mais atrativos que o papel de presente de uma agenda menos chique. E o trabalho da USAID em Cuba é nada mais do que a extensão desta agenda, algo que é mantido em grande parte escondido dos americanos e cubanos da mesma forma. É só graças aos esforços como daqueles da agência Associated Press, que por acaso somos capazes de testemunhar o estranho absurdo desta luta, uma eterna discussão.